sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

a todos

por um fim de ano lindo, colorido e sonoro; por um novo começar, um turbilhão de bons sentimentos, lirismos, sorrisos; por um eterno caminhar, completo em sua incompletude; pela vontade de tomar asas de empréstimo, de voar.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Suzana estava grávida de um fibroma

Esta história é baseada em fatos reais. Foi escrita em 2006.

Suzana estava grávida de um fibroma

Foi uma novela daquelas para escolher o nome do primeiro filho. “Eu quero ou Felipe Deividson da Silva ou Felipe Cristina da Silva”, dizia Suzana Cristina. Mas Felipe Cristina não pode, Suzana. Não é sobrenome... “Não me interessa. Fica muito mais bonito que só Felipe”. Depois descobrimos que o Deividson vinha da marca de motocicletas mais famosa do mundo, a Harley-Davidson. Em todo esse impasse, o menino acabou nascendo Felipe da Silva mesmo, vitória da resistência em massa das pessoas. Ele já veio ao mundo sem saber quem era o pai.

Suzana fazia a limpeza, cozinhava e costumava varrer a casa como ninguém, nunca deixava uma sujeirinha pelos cantos. É uma mulher grande, alta, gordinha, com voz acelerada, gestos acelerados e riso descontrolado. Quebrava xícaras com uma facilidade incrível. Quando Felipe nasceu, ela se acalmou mais, passou a dar assistência a seu filho. Era uma festa todas as vezes que o pequeno Deividson aparecia vestido com as cores do Santa Cruz. Boné, sapatinhos e roupas de Ricardo Rocha. “Ele já foi da seleção, era muito craque”, justificava a mãe.

Quatro anos depois, Suzana teve uma súbita crise durante a preparação de um almoço e colocou-se a vomitar. “Eu tou muito mal, sabe, mas acho que foi o tempero da comida ou alguma coisa estragada que eu comi ontem”. Uma ida ao banheiro e tudo voltava ao normal, afinal, Suzana era uma mulher forte. Era bastante forte mesmo.

Até que um dia o “forte” virou gorda. Que barriga enorme. Seria gravidez denovo? “Não tou grávida não, é um fibroma que me apareceu. Por isso minha barriga ta inchada desse jeito”, dizia Suzana. Ela estava grávida de um fibroma, um tumor benigno que se desenvolve a partir do crescimento anormal das fibras musculares que constituem a parede do útero.

O filho de Suzana era o próprio útero dela. E assim os dias foram passando e o fibroma aumentava mais e mais. As pessoas andavam muito desconfiadas, mas Suzana sabia desmentir como ninguém. “Já fui no médico, dotôra. Eles me avaliaram toda. O fibroma ta crescendo, mas não corro risco de morrer não”. A mãe dela, dona Helena, confirmava a versão de que seria vovó de fibras musculares. “Se ela tivesse grávida eu já teria notado. Eu tenho olho clínico, notei com duas semanas quando ela engravidou de meu netinho. Ninguém me engana não”.

Enganou. Depois de oito meses de gestação do fibroma, um dia Suzana sumiu, não foi trabalhar. “Parece que ela foi fazer a operação do fibroma, que o médico tinha aconselhado”. Dona Helena tampouco sabia do caso. Meudeusdocéu, cadê minha filha. Eis que uma cruzada por todos os hospitais da cidade se iniciou. Onde diabos estaria Suzana. “Essa cirurgia é demorada mesmo, o fibroma é uma coisa complicada”, contou uma amiga dela.

Algumas horas depois Suzana ligou. “Estou aqui no Albert Sabin, acabaram de operar meu fibroma e eu estou bem. Em um dia ou dois eu chego em casa”. Ah, que bom que foi tudo bem. A mãe respirava aliviada por ter encontrado a filha. Alguém então notou que o Albert Sabin era uma maternidade.

Dona Helena chegou esbaforida à maternidade. Em um leito, Suzana estava branca como a neve e com soro no braço. “Meu deus, minha filha. Você não ta com fibroma nada, você tava me enganando!”. Indignou-se. Ao pé da cama, negligenciado pela mãe, estava Fibroma Cristina da Silva. Ou Fibroma Deividson da Silva, uma menininha enrolada em um cobertor.

Ao invés de estar nos braços da mãe, a criança estava no pé da cama. Suzana não esboçava maior reação. Ela simplesmente não queria aquele tecido muscular com ela. O bebezinho, para ela, era um fibroma. Segundo a enfermeira, nem ao ter contato com a menina Suzana esboçou uma reação mais emocional.

“Ela queria dar a menina logo depois que pariu. Ela chegou aqui desesperada e quando a menina nasceu ela disse que eu podia entregar para qualquer pessoa que eu encontrasse”, revelou a enfermeira. Dona Helena continuava indignada. Ela xingava a filha no meio do hospital. “Você não é mais minha filha! Desnaturada! Como você faz isso com minha neta, hein?! Você não pode dar sua filha!”. A maternidade, atônita, observava aquilo.

Ao ver que Suzana continuava imóvel na cama, sem a menor demonstração de sentimento para com o bebê, Dona Helena resolveu levar a menina para casa. Ela não tinha nem roupas, afinal, fibromas não usam roupas, não iam meias rosas e nem fraldas. Algumas doações de outros pacientes da maternidade resolveram o problema em primeira ordem.

Ao sair da maternidade, Suzana voltou a trabalhar. Disse que a filha estava com a irmã, Rosineide. Ela seria a mãe da menina, agora com nome, Júlia. Sem Deividson e sem Cristina. Dona Helena, feliz com a netinha, nunca mais voltou a falar com a filha. Suzana, que também não chegou a conhecer o pai da menina, ainda continua tratando Júlia como se não fosse dela.

“Eu não estava grávida. Estava com um fibroma. Essa menina é filha da minha irmã, ela achou no hospital”.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O amor é uma vela laranja

Escrito em 2009.

Era sexta-feira à noite. Ele vestiu a sua melhor camisa, aquela azul listrada que ela adorava, e chegou mais cedo do trabalho. Entrou em casa na ponta do pé, mas ela ainda não havia chegado. Melhor. Arrumou a casa, varreu o chão e organizou a mesa da sala, aquela que só era usada para ocasiões especiais. Tirou as revistas de cima do vidro e colocou uma toalha rendada daquelas que ela comprava quando ia para o interior ver a família. Dentro de um embrulho que trouxe, várias velas aromatizadas. Ela adora as velas aromatizadas, sempre que ia ao shopping procurava as mais coloridas e com os melhores aromas.

Colocou um avental para não sujar a camisa e foi para a frente do fogão de quatro bocas que tinha ganho do Márcio na ocasião do casamento. Grande Márcio, o único defeito dele era torcer para o Botafogo. Dentro de uma das panelas de inox, um pedaço suculento de filé, imerso em um molho maravilhoso. Na outra panela, crepitante, um molho de mostarda igual ao do livro de receitas borbulhava, ansioso para encontrar a carne. Na terceira boca do fogão, macarrão. Eu nem gostava tanto assim de macarrão, mas ela era apaixonada por massa, por ela a gente comia massa todo dia. Vai ver é coisa da ascendência italiana. Um pouquinho de azeite, pimenta e um punhado de queijo ralado dentro de um pote de prata. Arrumou a comida na mesa e acendeu três velas laranjas. Eram tão laranjas que dava vontade de comê-las.

O perfume no ambiente era afrodisíaco. Ela vai ficar tão impressionada que vai me atacar, com certeza. Faz quase três dias que não nos vemos direito, ela sempre preocupada com as coisas da agência, andava trabalhando em turno dobrado. Dava até pena. O sexo já não era a mesma coisa de quando a gente namorava. Antes era uma loucura, todos os dias, em qualquer lugar, ambiente público ou não. Eu até ficava meio incomodado com aquilo, mas ela sabia me excitar como ninguém. Adorava quando, depois do sexo, ela encostava a cabeça no meu peito e ficava lembrando de como a gente tinha se conhecido e de como eu sabia deixar ela louca.

Me lembro como se fosse hoje. Tinha ido ao cinema assistir um filme asiático. Não sei exatamente qual era o dia, mas era dia de semana. Não tinha ninguém na sessão, só eu. Depois eu vi que ela vinha com um livro na mão e usava óculos de borda grossa. Adoro mulher que usa óculos de borda grossa. Estava com uma saia vermelha e aqueles sapatos franceses. Já se vestia como uma publicitária. Sentou perto de mim e deu um sorriso tímido, daqueles de canto de lábio. Não resisti e acabamos casando.

Lembrava do passado sentado no sofá, tomando o vinho chileno que tinha ganho do sogro, quando ouviu o barulho de chave na porta da frente. Correu para a cozinha, esperando ela entrar. Luiza vestia preto, dos pés a cabeça, e tinha uma aparência de acabada. O tempo e o trabalho vão mutilando as pessoas, mas ela continuava linda. Minha Luiza parecia personagem dos filmes noir da década de 40, tinha até sombra nos olhos.

Ela entrou e viu a mesa repleta de adornos e com os pratos que ele havia preparado. Sentou na cadeira e ficou parada, olhando para a vela laranja. Apagou o fogo com um sopro e depois tornou a acendê-lo, usando a chama de outra vela. Ela nem tinha me visto ainda, parecia cansada com alguma coisa. Resolvi chegar por trás e coloquei as duas mãos sobre os ombros dela. Era um bom massagista, sabia brincar com os dedos tão bem que ela soltou a bolsa e a pasta que carregava e se encolheu toda. Depois, tirou minhas mãos dos ombros e pediu para eu sentar na cadeira ao lado. Só depois que sentei eu vi que a maquiagem preta que usava no rosto estava toda borrada. A mancha negra que escorria por baixo dos olhos chegava até a altura da boca vermelha e seu corpo estava desfalecido na cadeira, parecia que estava morta. Fiquei comovido com aquilo e a abracei.

- Luiza, linda, a gente pode comer outro dia. Você não quer tomar banho e depois ficar deitada comigo?, perguntei.

Ela não respondeu nada, ficou só olhando para baixo, com a boca tremendo e uma lágrima escorrendo pelo olho esquerdo. Eu continuava abraçando-a, sem entender nada, quando ela resolveu falar a primeira coisa em mais de dez minutos.

- Eu não te amo mais, desculpa.
- Como?, perguntei, chocado. Parei de abraçá-la.
- Desculpa, Fábio. Eu simplesmente não consigo mais, não sinto mais aquilo por você.
- O que aconteceu? Alguma vez eu te tratei mal, te ofendi? Eu te amo Luiza.
- É que estou apaixonada.

Fábio levantou da cadeira e acendeu um cigarro. Suas mãos tremiam.

- Apaixonada por quem, porra?
- Prefiro não falar.
- Já que é para me foder, me fode direito. Por quem, porra?, tornou a perguntar, transtornado com a notícia.
- Pelo Márcio.
- Puta que pariu, Luiza. Pelo Márcio? Pelo meu melhor amigo?
- Ninguém comanda isso, Fábio. Desculpa, mas eu não consigo mais.

Luiza levantou-se e deu uma última olhada na mesa, disse ter adorado as velas laranjas e foi embora. Fábio estava no segundo cigarro. Sentou na cadeira, serviu-se e comeu o espetacular filé ao molho mostarda. Não colocou macarrão. Depois de comer, ficou sentado vendo as chamas consumirem as velas.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A verdadeira história de Garrinchinha

Aclébio era morador de um prédio grã-fino na rua Visconde de Pirajá, no bairro de Ipanema, zona sul do Rio. Era um rapaz com seus já 26 anos, estudava engenharia e trabalhava com o pai, Marcílio. O prédio era majestoso, propício a uma família de empreiteiros em um país que se construía e reconstruía. Dos vários porteiros que tomavam conta do edifício, Valmir era o porteiro-chefe. Tinha vindo de Campina Grande, na Paraíba, e participado da construção do prédio, 40 anos antes, como mestre-de-obras, o que lhe rendeu o cargo de porteiro-chefe. Era respeitado como um porteiro-chefe deveria ser. Valmir morava no playground com mulher e três filhos e levava a rotina de morador do metro quadrado mais caro da cidade. Conhecia a rotina de todos os moradores e sabia decorado a placa de todos os carros estacionados na garagem. Gostava de se gabar falando que morava no Macadâmia. A Macadâmia é uma fruta de origem australiana, em formato de noz, mas que pode ser utilizada para fabricação de doces finos. A história que se contava era que o prédio ganhou esse nome porque tinha herdado a cor da fruta.

O segundo na hierarquia da portaria era o Garrinchinha. Garrinchinha também veio da Paraíba, mas, ao contrário de Valmir, de João Pessoa, em um ônibus de carreira. Há 35 anos foi trazido pelo pai, que tentava a sorte no Rio de Janeiro. Ninguém sabia seu nome ao certo, nem mesmo o Valmir, mas o fato é que havia herdado o apelido porque jogava futebol nos campos de várzea mais ou menos como o ídolo do Botafogo. Suas pernas não eram tortas, mas Garrinchinha também jogava na ponta-direita e costumava entortar os adversários nas noites de pelada, o que gerava certas discussões sobre a falta de respeito para com os adversários. As moças que assistiam às partidas soltavam gracejos para o baixinho e suspiravam com seu atrevimento no campo. Garrinchinha estava acostumado com o assédio. Quando ouvia Maria Betânia em seus plantões no Macadâmia, era implacavelmente alvo das moças que ali trabalhavam. Ele era mais novo que Valmir e não tinha filhos. Nem mulher.

Isso nunca foi uma questão para os moradores do Macadâmia. Todos gostavam de Garrinchinha, sempre solícito ao entregar a correspondência e em buscar bicicletas em um quartinho no canto da garagem, um trabalho às vezes ingrato, pelo amontoado de ferro comido pela maresia e pneus murchos que se precisava enfrentar para resgatar alguma bicicleta. Sempre sorrindo, Garrinchinha brincava e elogiava os moradores que iam pedalar nas ruas de Ipanema. Gostava de ouvir rádio enquanto cuidava da portaria e costumava cumprimentar todos os moradores com um bom dia. Era grande amigo das empregadas e faxineiras, trabalhadoras braçais que faziam aqueles apartamentos se movimentarem. Sempre gargalhava com elas e dizia gracinhas para as mais atiradas. Alguns suspeitavam que Garrinchinha fosse um grande comedor. Outros, que era doce. Como Macadâmia.

A revelação

Como de praxe, em dias de sol forte e céu azul, a piscina virava uma festa. Situada na cobertura dos 18 andares do Macadâmia, era uma bênção para aqueles estressados habitantes do Rio de Janeiro. Podiam ver a praia, o calçadão, a vida acontecendo. Nessas ocasiões, o morador do 1302, seu Valdo, bebia cerveja com Marcílio, pai de Aclébio. Seu Valdo era um homem acima de qualquer suspeita, desembargador ilibado, funcionário da Justiça, e um beberrão fora de série. Quando começava a contar seus causos, formava-se uma roda de curiosos interessados nas histórias que presenciava no trabalho e nos bordéis que freqüentava. Em uma manhã, vestindo sunga branca e segurando um suado copo de cerveja , sentenciou:

- Olha aqui, o Garrinchinha é viado!

Os moradores ouviram aquilo sem acreditar, pensando que a cerveja já tivesse tomado conta dele, como era costumeiro. Alguns questionaram o desembargador. “Mas o Garrinchinha é um atleta!”, bradou Marcílio. “Que absurdo. Ele certamente dá uns pegas na Judite, a menina que trabalha lá em casa...”, disse outro morador.

Dona Marisa, moradora do 1602, pensava estar lidando com um verdadeiro homofóbico. Quis saber de onde surgira aquele impropério. Aqueles lábios grossos e cansados de charuto e fumaça não hesitaram na réplica, incisiva.

- Um dia eu estava caminhando na praia e ele passou por mim correndo. Vocês precisam ver esse cidadão correndo! É uma bailarina! Qual o homem de verdade que corre daquele jeito? É um boiola de marca maior! Batata!

Dona Marisa torceu os lábios. Para ela, Garrinchinha era um doce. Outros simplesmente saíram de perto de seu Valdo, como que tomados por uma ira repentina contra um homem que até então era a voz da razão em Macadâmia. Marcílio olhou para Aclébio e os dois não deram uma palavra sobre o incidente. Continuaram ali tomando uma suave cerveja até o sol acabar. Voltaram para casa e esqueceu-se do delírio de seu Valdo. Nunca mais o assunto veio à tona nas reuniões dominicais na piscina do prédio. Preferiam falar de coisas menos polêmicas ou da vida de algum morador que não fosse declarado como homossexual.

Aclébio, no entanto, ficou com aquilo na cabeça. Morava em Macadâmia há 26 anos e nunca notara nada revelador em Garrinchinha. Ao mesmo tempo, via seu Valdo como um exemplo. Uma figura cristalina, da mais alta reputação e perspicácia. Não podia estar errado. Nunca errava, nem mesmo nos casos mais complicados. Em um dos tantos cafés-da-manhã que tomava antes de ir ao trabalho, comentou a história com a “menina que trabalhava na sua casa”. Chamava-se Piedade, mas, ironicamente, não tinha piedade de ninguém. Tanto sabia disso que preferia ser chamada de Dai. A origem do apelido é desconhecida, mas nem mesmo a filha de quatro anos a chamava de Piedade. Era uma pessoa de consciência.

Ouviu com cuidado o relato de Aclébio enquanto lhe servia ovos mexidos e calou-se. Muito religiosa, Dai era evangélica e mesmo que não tivesse piedade de ninguém, evitava questionar o estágio natural com o que Deus criou o homem e a mulher. Chamar Garrinchinha de “viado”, como seu Valdo havia feito, era pecar contra o nome sagrado. Consentiu com a narração de Aclébio e continuou seus afazeres.

No dia seguinte, como acontecia nos sábados em que ia trabalhar, levava a filha de quatro anos para o apartamento do Macadâmia. Muito silenciosa, fazia o serviço sem incomodar os moradores. Era adorada. Ao descer do elevador para ir embora, encontrou Valmir, o porteiro-chefe. Os olhos daquele senhor brilhavam com a menininha de quatro anos que, sorridente, sempre o abraçava. Ao ver a comovente cena, Dai teve uma ideia que maculava seu nome de nascença. Iria descobrir a verdadeira história de Garrinchinha. Era inconcebível um Paraíba não ser cabra macho. Vendo Valmir brincar com a sua filha, resolveu começar pelas beiradas.

- Criança é uma benção de Deus, não é?

- Não tem coisa melhor, ainda mais quando a gente está ficando velho - respondeu o porteiro.

- Você tem quantos filhos, Valmir? Dois?

- Tenho três, dois meninos e uma menininha agora com cinco anos.

Instintivamente, aquela mulher sabia o que estava fazendo. Perguntou por outro porteiro, o Severino, porteiro noturno que era chamado pelos colegas de Xororó, cantor da dupla Chitãozinho e Xororó, pelos longos cabelos que cultivava.

- E o Severino, tem quantos filhos?

- Tem um rapagão – disse Valmir. - Está trabalhando com condução durante a semana – complementou, enquanto continuava brincando, como que encantado pelos olhinhos daquela criança, que tanto lembrava a sua própria.

- Eu achei que ele tivesse um filho mesmo. E o Garrinchinha, hein? – questionou Dai, a malícia em pessoa.

Uma coleção de bonecas

Valmir ouviu a pergunta, largou a criança e virou os olhos para Dai. Apertou seus ombros, um com cada mão, e abriu um sorriso de escárnio. “Aquele ali tem uma coleção de bonecas!”, sentenciou. Não se contendo, chamou outro funcionário do prédio e fez ele repetir a frase. “Uma coleção de bonecas!”, repetiu. Piedade havia solucionado a questão. Mal esperava a segunda-feira para poder contar a história para Aclébio. Isso iria circular pelo prédio e logo a falsa imagem do Garrinchinha jogador e paquerador seria desfeita.

Dito e feito. Dois dias depois, na mesma cena do café da manhã, contou o que ouviu para Aclébio. Esse se divertia, sem acreditar na tirada de Valmir, pretensamente tão sério e sisudo. Contou para seu pai, Marcílio, que não podia esperar para contar na reunião em volta da piscina no fim de semana. Rezava para que fizesse sol. Era garantia que todos estariam ali, com seus copos de cerveja suados, isopores, carteado, e o mais importante, seu Valdo, vestido com sunga branca e charuto no canto da boca, a destreza em pessoa.

Formou-se a roda ao lado da piscina e, vendo a praia de Ipanema sob um belíssimo sol de fevereiro, Marcílio finalmente teria uma história para contar. Em dado momento interrompeu seu Valdo. “Tenho uma ótima!”, disse, não se cabendo em si. Marcílio nunca tinha uma ótima, o que era motivo de vergonha. Tinha para si que pai que não sabe contar histórias não é motivo de orgulho para seus filhos. Seu Valdo parou de contar a anedota sobre uma secretária do escritório e dispôs-se a escutar o pai de Aclébio.

- O Garrinchinha é mesmo um viado! O Valmir contou que ele tem uma coleção de bonecas! De bonecas, podem acreditar nisso?! – relatou, divertindo-se com o espanto dos demais e para deleite de seu Valdo.

- Eu disse que ele era viado! Um homem que corre daquele jeito não é homem! Sempre soube que homem que corre como se faltasse uma mola no corpo é porque é viado! – gritava seu Valdo, copo de cerveja na mão, sunga branca esgarçada e o charuto entre os dedos, uma autoridade impressionante. – Eu disse, não disse?! Engulam essa!

Logo, todo o prédio saberia que Garrinchinha era homossexual, menos ele mesmo. A história circulou por dias entre todos os moradores. Alguns passaram a não encarar Garrinchinha. Outros a rir de seus sorrisos com desdém. Dona Marisa, do 1602, chamou Valmir em um canto e pediu que seu carro, um BMW prata absolutamente impecável, fosse lavado semanalmente pelo Severino. Antes, era função do Garrinchinha, que a fazia com enorme zelo. Aos poucos, foi percebendo que os moradores mais queridos passaram a não mais se dirigir a ele e mesmo a não aceitar correspondências que viessem de suas mãos. Para ele, o Macadâmia perdeu a doçura.

Garrinchinha parou de sorrir. Ficou amargo.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

cut copy

the world seen by the perspective of a sword

going through

the longboard girls crew carving the montains near madrid, spain. music is from the decemberists.