A banda tocava, um tanto enfurecida, sob luzes faiscantes
e quentes, os braços da plateia, que se jogava de um lado para o outro, em um
balanço de mar, pés soltos na areia do tablado, olhos vidrados naquela
adulação sonora. Em meio àquela multidão hipnotizada, havia um olhar distinto. Um
olhar que, curioso, não olhava o palco, não mirava a mesma direção das milhares
de retinas vizinhas. Focava-se, ao contrário, em um outro olhar. Os olhos um
tanto esverdeados daquele rosto visavam outros, castanhos, sorridentes,
pequenos, paralisados. A mulher ignorava solenemente o que se passava ao redor e se
fixava, em meio à massa humana, àqueles olhos, barba, dentes, nariz. Enquanto o
mundo se movia, pés saltitavam e dancinhas proliferavam, os olhos dela tinham
apenas um destino. Um abrigo reconfortante, quente, cálido. O interessante é que
era ela quem gostava da música. Estava mais do que claro que ela que o trouxe
para o show. Não fosse ela, poder-se-ia apostar o quanto fosse, ele ali não
estaria. Certeza. Os sorrisos dele não eram o clarão de felicidade de quem
vivencia uma experiência auditiva. Era outro sentimento. Ne sais quoi. À medida que as
músicas iam sendo trabalhadas e construídas em meio a uma aura densa, etérea,
sonhadora, ela pairava no ar olhando para ele. Estava de costas para o palco. O
tempo inteiro. Ela cantava todas as músicas, mesmo as instrumentais, mas ignorava
os músicos. Eles eram parte de um espetáculo privado, uma trilha sonora de
fundo para um abraço que ela procurava – e causava. Em dado momento, a coisa
beirou o ridículo. Chegou ao cúmulo de dançarem de mãos dadas, como que numa
valsa, em um baile de guitarras e xilofones. Aquilo irritou um bocado de gente.
Deu pra perceber. O casal dançava de um lado para o outro, cercado de olhos e
ouvidos atentos, numa comunhão tão íntima que tudo levava a crer que eram os
outros os intrusos. Estavam atrapalhando uma das mais doces entregas, um bailar
esquisito e desconcertado. Depois, ela (sempre ela!), passou a fingir que o
ignorava – isso olhando para ele – só para ter certeza que ele ficaria
perturbado com aquilo. Ele fingia ficar. Depois dos segundos de bobeira, os
dois voltavam a se abraçar. O mundo acabava nos metros quadrados no entorno. Não
era importante. A música funcionava somente como pano de fundo de um encontro há tanto
esperado. Ou não: o amor é
negócio tão imprevisível que talvez eles tenham se visto há vinte minutos. O fato é que aquilo continuou durante toda a apresentação. Contaram-se
os minutos em que ela olhou para frente. Uns dez? Talvez menos. O show dela
era outro. Ele, coitado, não fazia questão de estar ali. Já que estava – por causa
dela, claro – tentava fazê-la sentir-se única. O rapaz era esforçado, reconhece-se. Abraçava,
rodopiava, metia as mãos naqueles quadris finos, mexia os cabelos pretos
ondulados, dizia coisas no ouvido... Tinha uma mania incomum de segurar as
orelhas dela. O fato é que ele, ao contrário dela, não entendia ou conhecia
quem tocava. Um minuto de observação e isso ficava mais do que claro. O modo
como olhava para o palco era inseguro, aquela insegurança típica de quem está
vendo algo novo. Mas ele gostava do que via. Gostava por que ela estava feliz. Mas ignorava
a banda. Ponto. Isso não tem discussão. Ele poderia estar em qualquer lugar que
a reação seria a mesma. O irônico é que era ele, que não conhecia
aquele turbilhão de instrumentos marcianos, que estava voltado para o palco. O amor
é injusto. Ela, certamente a culpada pela ida, trocava um show pelo
outro. Ou ficava pela metade em cada um. A verdade é que
parecia não se importar com o que “perdia”. O outro lado era mais
significativo.