sexta-feira, 30 de março de 2012

malattìa dei sentimenti

"... a parede fenestrada de um edifício alto... pode ser vista como vazia embora o arquiteto tivesse lá colocado algo para nós vermos. O efeito do vazio surge quando as formas envolventes não impõem uma organização estrutural sobre a superfície em questão. O olhar do observador encontra-se no mesmo local onde quer que tente fixar-se, sendo um local como o outro; sente-se a falta de coordenadas espaciais, de um enquadramento que determine as distâncias. Em consequência, o observador experimenta uma sensação de abandono."

sábado, 17 de março de 2012

Arthur nasceu

Quando recebi a notícia de que Arthur nasceu, estava em casa. Meus filhos não. Muito menos meu marido. Além de mim, só a Sandra. Ela estava comigo há algumas semanas, substituindo a mãe do Arthur. Tinha por volta de seus 40 anos, mas confesso que nunca tive coragem de perguntar a idade. Parecia uma boa pessoa. Algo me diz que ela tinha TOC de limpeza, porque não deixava o balcão da cozinha sujo um minuto. Qualquer copo deixado por lá era lavado imediatamente. Isso era bom por um lado, mas, por outro, atrapalhava o rendimento dela nas outras tarefas. Ela não sabia passar roupa, por exemplo. Ficavam amarrotadas. Camisa social, principalmente. Mas era uma boa pessoa. Não costumo falhar nisso e, depois de algumas semanas, ela tinha ganhado a minha confiança. Foi ela quem me contou que o Arthur nasceu. “Há sete horas”, ela disse. Fiquei surpresa, já que o parto estava marcado só para dali a 10 dias. Soube que mãe e bebê estavam bem, mas que havia sido cesárea e não parto normal, como a mãe queria. “Arthur estava dormindo e os médicos acharam melhor fazer cesárea”. Achei estranho. Descobri o horário de visitação e resolvi ver aquela nova criatura. “É só entre 16h e 16h30”, Sandra me alertou. Daria tempo. Deixei a casa com ela e fui até a maternidade. Era uma maternidade de referência. Pública, claro. Mas das melhores. E para partos de risco, como o do Arthur. No ano passado, a mãe dele fez um aborto nessa mesma maternidade. De uma menininha. Também aconteceu comigo. Perdi Juliana quando ela estava com quatro meses, mas evito pensar nisso.

Ao entrar na maternidade, vi uma fila enorme de pessoas para a visitação. Me senti deslocada. Eu era a única pessoa branca ali. Não é preconceito, é um fato. Algumas outras mulheres me olhavam de forma estranha, como que questionando o que eu estava fazendo ali. Me senti despida enquanto enfrentava a fila. Ela terminava em um enorme balcão, em que mais uma mulher fazia uma espécie de triagem. Percebi que tratava de forma ríspida as visitantes. Aquilo me revoltou um pouco. Na minha vez, ela fez diferente. Me abriu um sorriso sem graça e perguntou quem eu iria visitar. “Sandra”, respondi. Depois, disse o número do quarto. Ela conferiu os dados em uma prancheta e novamente abriu um sorriso, desta vez gentil. “Por ali, senhora. Mas o horário de visitação só vai até as 16h30”. Eram 16h08. Fiquei na dúvida se deveria subir, realmente. A atendente me informou que cada mãe só poderia receber duas pessoas de cada vez e que o único horário de visitação era aquele. Apenas meia hora diária de contato com o mundo exterior. Lembrei da minha primeira gravidez e de como meu marido ficou junto do meu filho por todo o tempo. Aquilo contribuiu para o meu choque. Resolvi que ficaria por só alguns minutos.

Subi o elevador, abarrotado de visitantes. De novo, me senti intrusa. Senti tristeza. Não costumo ter esses acessos de realidade escancaradas em minha cara, a não ser pela televisão, e não sabia como lidar. As outras pessoas esperavam que a porta se abrisse, como que em estado de torpor. Sexto andar. O meu. O elevador desaguava em um corredor imenso, com vários quartos coletivos. Contei as camas: cada quarto tinha seis camas, como que num alojamento de exército. Em cima de cada cama, uma mãe e um bebê. Rosas ou azuis. Segui para o quarto indicado e vi Sandra lá dentro. Ninguém mais estava visitando aquele quarto, só eu. Ao entrar, me senti mal novamente. Senti uma espécie de pena e novamente fui tomada por tristeza, por impotência de fazer mais. Ela tomou um susto quando me viu. Estava quietinha na cama, encolhida, com Arthur nos braços. “A senhora veio! Alguém mais está vindo com você?”, perguntou, os olhos acelerados. Respondi que não tinha visto mais ninguém e que ficaria só alguns minutos para não atrapalhar a subida de outras pessoas. Ela pareceu bastante inquieta. Era o retrato daquela sala. Bem cuidada, organizada, mas abandonada. Estava em cima da cama, bebê nos braços, outras cinco mulheres na sala, mas imensamente sozinha. O marido trabalhava como mecânico em uma concessionária da Mercedes e a filha estava na escola, por isso, provavelmente, não estavam ali. Quis abraçar aquela mulher, mas não achei apropriado. Não estava sorrindo, mas transpirava um ar de esperança e espera. Olhei aquela criança, um bebê gordinho, pequenino, lindo. Grandes olhinhos negros. Perguntei o porquê da cesárea. Sandra me contou que a bolsa tinha estourado na noite anterior e que ela foi às pressa ao hospital. Os médicos avaliaram o quadro e viram que Arthur não se mexia. Fizeram um eletro e ele continuava parado, com a respiração muito fraca. Não teria forças para um parto normal. Não queria sair daquela zona de conforto uterina e ser despejado na frieza. Aquele seria o segundo aborto em dois anos, mais um na vida daquela mulher. Felizmente não foi. Optaram pela cesárea e, agora, aquele ser estava ali na minha frente, mexendo a boca e os bracinhos. Não fiz que iria pegá-lo nos braços e ela tampouco fez a oferta. As outras mulheres do quarto me fitavam com interesse. Percebi que a cama de Sandra ficava ao lado da janela e que ela tinha colocado uma toalha estendida. Imaginei a quantidade de sol que deveria bater incansavelmente naquela cama. E lembrei da solidão que aquela mulher deveria estar sentindo. Vi uma outra mãe dando banho na cria. Não havia enfermeiras. Às 16h14 me despedi de Sandra. Dei-lhe um beijo no rosto, olhei novamente para Arthur e saí. Não queria impedir que outra visita chegasse. Minhas entranhas apertavam-se.

Quando desci, fui até o balcão de atendimento e perguntei se tinha mais alguém para visitar mãe e bebê. “Não”. Pensei em subir de novo, mas não queria atrapalhar uma possível chegada do marido. Não seria justo. Na saída da maternidade, a sensação de estranhamento continuava. Não me senti mal pelas coisas que tinha conquistado até aquele momento, mas pelo que aquelas outras mulheres não conseguiram. Ou conseguiram pela metade e completamente sozinhas. Pensei no futuro de Arthur e nas oportunidades que ele teria. Parece que ele já sabia das dificuldades e tinha escolhido encerrar sua passagem nesse mundo antes mesmo de conhecê-lo. Auto-defesa.

Lembrei de meu aborto e chorei na garagem do prédio. Cheguei em casa, a outra Sandra estava me esperando. A pia estava limpíssima. A casa também. Disse para ela ir, para não pegar trânsito. Ela saiu pela porta. Na segunda-feira estaria novamente comigo.

terça-feira, 6 de março de 2012

yo echo, tu echas...



echar de menos. a veces solo dos palavras es poco.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Francisco Chagas, sociólogo


Francisco Chagas, ou simplesmente Chico, como era chamado pelos seus alunos, repetia as mesmas coisas todos os dias. Acordava com imensa dificuldade, abria os olhos com preguiça e se espreguiçava com gosto. Dormia numa cama de casal, mas acordava sozinho. Sua mulher tinha morrido há três anos, vítima de um câncer no pâncreas. Disseram a ele que o câncer de pâncreas é o pior de todos. No início foi difícil, se encolhia num canto e chorava por horas a fio. Colocava a cabeça entre as mãos e pensava na esposa, no quão importante ela era e em todas as lembranças que construíram juntos.

Na ocasião da morte, pediu licença da universidade, onde dava aulas na graduação de Sociologia, para tentar colocar a cabeça no lugar. Chico ainda não tinha se acostumado com a idéia de estar sozinho, de acordar sozinho, de dormir sozinho, de não ter os sorrisos compartilhados, as mãos dadas, o sexo e até as brigas. Tinha 43 anos e vivia uma vida módica, repetitiva, comum. Francisco Chagas não era ninguém. Morava sozinho no mesmo apartamento de dois quartos no Leblon que dividira com a mulher. Não tinha amigos, seu filho morava na Alemanha, onde fazia doutorado, e o restante de seus parentes não lhe dava bola.

A relação com o rebento não era e nunca foi muito boa. Os dois não se batiam e, se conseguia entender o mecanismo de funcionamento das sociedades ao longo do tempo, Chico não se comunicava com seu filho. Os dois conviveram por 23 anos no mesmo espaço e não compartilharam nenhuma história importante, nenhum momento especial. Logo depois da morte da mãe, o rapaz foi para o exterior. A despedida do pai foi complicada, Francisco foi até o aeroporto internacional com os olhos marejados. Mesmo que já se sentisse assim com o filho do lado, sabia que agora ia ficar sozinho de verdade. Flávio não soube corresponder direito ao abraço que o pai lhe deu.

Os dois nunca tinham trocado carinhos, sorrisos, nada. Era uma mera convenção formal. No portão de embarque, Flávio não olhou para trás. Passou pela alfândega levando uma mala de mão, teve o passaporte vistoriado e entrou. Francisco ficou arrasado, foi correndo para o banheiro do aeroporto e escolheu a primeira cabine vazia para chorar. Sabia que agora não tinha mais jeito, que a relação que poderia tentar construir com o filho não voltaria mais e que havia milhares de quilômetros separando os dois. Seus esforços e as tentativas de Flávio de reviver algo que nunca existiu sempre foram insuficientes.

Os dois nunca tiveram uma boa noção do que era realmente ser pai e filho, Chico tornou-se pai aos 19 anos, não estava preparado, e Flávio dividia a atenção do pai com dezenas de alunos da graduação. Concorrência que considerava desleal, pois nunca foi afeito à Sociologia. O elo de ligação entre os dois era a mãe, Ligia. Mediadora de discussões e de silêncios, ela tentava criar uma convivência, ainda que forçada, entre as partes. Também fracassou. Fingia que conseguia, a verdade era essa. O fato é que, depois de sua morte, Francisco passou a chorar com freqüência.

Era um homem forte, sadio, admirado pelas alunas. Chamava a atenção, tinha os olhos bem pretos e arredondados, barba mal feita e um ar inegável de intelectual, mas escondia lá dentro uma personalidade muito sensível. No dia da despedida do filho, passou cerca de 20 minutos dentro da cabine. Chorava copiosamente, encarava a ida de Flávio como uma segunda morte na família e essa mais cruel ainda, pois era remediável. Esperou as lágrimas cessarem e limpou os olhos o máximo que pudesse, não podia andar no saguão do aeroporto naquele estado. Depois de lavá-los com bastante água e respirar fundo, foi até o carro. Olhou na agenda do telefone celular, mas não viu nenhum amigo que pudesse lhe dar algum conforto. Nenhum colega de profissão que o acompanhasse e amparasse.

Na volta para casa, um turbilhão de pensamentos tomou conta de si. Sua cabeça pesava mais do que nas piores crises de enxaqueca e suas mãos não conseguiam pressionar o volante com força. Chegou a pensar em soltar as mãos e ver o que acontecia, se o carro estava desalinhado ou não, se poderia pender para a esquerda, bater contra o meio-fio e capotar cinematograficamente na pista. Sempre teve curiosidade em saber como é estar dentro de um carro que capota. Será que dói? Nunca soube. Por mais frágil que suas mãos estivessem, dirigiu até em casa.

A entrada no apartamento foi das mais tristes. O quarto que dividia com a mulher ainda conservava muitas lembranças dela: fotografias, quadros, livros, sorrisos, cheiros, cores, sensações. Agora também havia o do filho, intacto, simples. Uma cama de solteiro, alguns livros, um tênis apoiado na parede. Chico costumava andar na praia do Leblon. Tentava, desesperadamente, pensar em outras coisas, em algo que lhe desse alguma motivação. Não funcionava muito, ele se boicotava e andava muito pouco e, quando andava, acaba desistindo no meio do caminho e sentava na areia, olhando o mar.

No dia em que acordou, fazia muito frio. Depois de lutar muito com a própria resistência em levantar e de pensar na esposa que não estava mais consigo, o professor abriu as pesadas cortinas pretas e, ainda de pijama, pegou o jornal na porta. As noticias eram iguais há 20 anos, exatamente as mesmas coisas, só mudavam os protagonistas. Era um remake da mesma peça de teatro. Apesar de ter a assinatura, Francisco não lia o jornal. Comprava porque se algum aluno perguntasse algo, ele poderia checar, mas, por conta própria, lia a capa e o caderno de esportes, no máximo.

Achava aquilo tudo uma hipocrisia sem tamanho e se irritava quando alguém começava a comentar algum caso que estivesse em destaque na mídia. Tomava café sem a menor emoção, mastigava o pão duro e velho com desagrado e remexia o mamão com a colher de chá. Tirava as sementes pretas e as esmagava contra o prato azul. Comia pouco no café da manhã, não tinha mais a mulher para fazer omeletes, panquecas e as tortas que adorava. Se virava como podia. Tinha uma vida franciscana depois da morte da esposa. Guardava algum dinheiro no banco, mas evitava usá-lo. Talvez deixasse para o filho, mas ainda não ponderou sobre o assunto.

Enquanto comia, Chico folheava o jornal, lia as manchetes de assassinato, crise, inflação, desemprego e olhava as figuras do caderno de esportes, onde lia as matérias do Vasco da Gama. Colocava uma quantidade descomunal de açúcar no café. Para ficar acordado nas aulas, dizia. Depois de comer, Francisco sempre levava os pratos para a pia da cozinha, mas não lavava nenhum. Deixava-os sujos por dias até que a situação ficava insuportável e ele então tomava alguma atitude.

Quando ia para a universidade, tentava ouvir algum disco antigo. Apostava em clássicos da bossa nova, mas tudo o que colocava para tocar lhe lembrava de Ligia. Menescal, Jobim, Lyra, ela era viciada em todos eles. Colecionava vinis originais dos artistas e tinha uma compilação de cds que adorava. A bem verdade, Chico ouvia aquilo para ficar mais perto da mulher. As vezes se distraía pensando nela, fazia uma manobra mais arriscada no trânsito ou esquecia de travar as portas. Se a esposa era apaixonada por musica, ele era, ou tinha sido, pela Sociologia. Estudara na Europa, onde fez doutorado e consumia livros por compulsão. Tinha mais de 400 em casa e jurava que tinha lido a maioria. Nas aulas, a paixão não vinha muito a tona.

Falando a verdade, ele já não via mais o porquê de fazer aquilo. Os alunos eram burros, insuportáveis, desinteressados. Ninguém ali queria aprender, só queriam notas no fim do período. E Francisco fazia isso. Dava suas aulas no modo automático, não olhava pra o rosto de nenhum dos alunos, os entulhava de conteúdo desorganizado, e depois aprovava todos. Algumas garotas tentava ludibriá-lo com decotes e outros artifícios para garantir um eventual aumento na nota, mas Francisco abominava aquele tipo de prostituição desesperada da burrice.

Passava nove horas na universidade, onde, às vezes, tomava café com algum outro professor ou aluno mais interessado. Eram ocasiões raríssimas. Preferia sempre expresso, com muito açúcar. Não ia para outros lugares depois do expediente. Chico era um professor atuante, lutava pelas melhorias das condições de ensino e de infra-estrutura acadêmicas, mas a paralisia da administração da faculdade o desanimava cada vez mais. Era simplesmente inútil continuar tentando. Costumava tomar um chope com alguns colegas até a data da morte de Ligia. Depois daquele dia, ia direto para casa.

Passava entre uma hora e meia e duas horas no trânsito até que chegava no seu apartamento de dois quartos no Leblon. Assistia um pouco de televisão, olhava as pessoas caminhando na rua, comia alguma coisa e então colocava o pijama que a esposa tinha lhe dado de presente anos atrás. Com ele, deitava na cama de casal e abria os braços esperando um abraço que não viria. Vivia incompleto. E seria assim por todos os dias