sábado, 30 de junho de 2012

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quarta-feira, 6 de junho de 2012

"Mulher minha tem que trabalhar!"


Gritou, com uma ferocidade tremenda:

“Mulher minha tem que trabalhar!”. E emendou: “Mulher que fica em casa esperando o marido é o fim da picada, entendeu? É o fim da picada! Simplesmente não dá!”. 

Moreira repetia o mote com uma certa constância, sempre que se dava conta que a esposa, com quem havia se casado recentemente, não conseguia um emprego. Moreira, artista plástico, se dizia um homem moderno, contemporâneo, à frente do seu tempo. A era do machismo, para ele, tinha que ser sepultada. Mulher tinha que trabalhar, tinha que ajudar a trazer dinheiro para dentro de casa. 

Todas as vezes, a mulher ouvia aquilo, pequena, sem reação. Procurava trabalho há dois anos e sempre ouvia nãos. As portas se fechavam em sua cara com ferocidade só parecida com os gritos do marido. Era uma mulher jovem, nos seus vinte, quase-trinta. Bonita. Melhor, linda. Chamava a atenção, fazia os homens entortarem o pescoço. Ouvia tantas cantadas que sentia certo asco da virilidade masculina. Se interessava por Moreira, por sua sensibilidade, a sensibilidade de um artista plástico. 

O casamento
Casaram-se há dois anos, com promessas de felicidade eterna. Moreira era o homem cobiçado dos sonhos de Catarina, um homem atraente, sensível: um bom partido. Resolveram marcar o casamento logo. Mal se passaram meses de namoro e a roupa branca já tomou conta do corpo curvilíneo de Catarina. Disseram o sim, igreja lotada, amigos e familiares sorridentes e as luzes nos olhos de Catarina eram a metonímia da felicidade. Nada poderia dar errado.

Deu.

Depois da Lua de Mel, mudaram-se para o novo apartamento – com porteiro, Moreira fazia questão -, e passaram a viver o casamento. Moreira, artista plástico, pintava mulheres, homens, paisagens. Mas preferia pintar mulheres. Jovens, de preferência. Traria mais visibilidade a seu trabalho, dizia. As obras de Moreira, em sua maioria, eram essas jovens, mulheres, despidas, deitadas em seu ateliê como madonas renascentistas. Ele gostava daquilo.

Catarina não gostava tanto, mas via com indiferença. Conheceu o marido daquele jeito, não poderia mudá-lo agora. E nem queria. Diversas vezes chegava em casa e se deparava com Moreira pintando alguma jovem estudante. Assentia com a cabeça, recebia um beijo morno, na testa, e saía sempre em silêncio. Como dizia sua mãe, era um esposa exemplar. Respeitava o trabalho do marido, cumpria seu papel de esposa. Na realidade, admirava o marido profundamente, admirava aquelas mulheres jovens e espetaculares que ele trazia para seu apartamento e sentia uma certa inveja daqueles corpos recém esculpidos. 

Mas respeitava o marido. Respeitava tanto que, mesmo que desconfiasse que a traição era a terceira moradora de sua casa, não se deixava contaminar pelas suspeitas. Deixava acontecer. Ou ao menos achava tudo isso. Não iria estragar o casamento recém realizado por desconfianças banais. Catarina era uma esposa padrão, conforme repetia a sua mãe. 

Seis meses de casados se passaram, os quadros vinham, as jovens deitavam-se e os corpos se desembrulhavam. Catarina via aquela rotina com certa misoginia, fingia não se perturbar. Com seus quase trinta, era uma mulher absolutamente qualificada, tinha mestrado e doutorado e dezenas de artigos publicados. Era convidada com certa frequência para debates acadêmicos e contribuía para o corpo de professores de uma universidade como professora assistente. Mas sem receber. Não recebia um centavo, a universidade não tinha fundos. Ela entendia. 

E ia levando. Moreira, com o tempo, foi se tornando cada vez mais distante. Trancava-se no ateliê com as jovens. Fechava a porta. O beijo na testa, morno, esfriou de vez, deixou de existir. Catarina chegava em casa e via um pedaço de madeira pintada, trancada, inerte. Dentro, alguns sorrisos. Ele estava trabalhando, era um artista. Mas o artista, assim como o beijo na testa, tornou-se ausente. Com frequência, Catarina, cambaleante, desistia de esperar pelo marido e se entregava às cobertas. Ele vinha horas mais tarde, podre de cigarro, álcool e bafo. Deitava-se e dormia. Ainda acordada na cama, ela via toda a sequência, mas fingia dormir para não contrariar o marido. Não se dignava a tentar alguma coisa.

O trabalho
Tornou-se rotina. Mulheres, jovens, bonitas, pequenas como ela. De todos os tipos. Vinham, trancavam-se, ela dormia sozinha. Com um corpo natimorto ao seu lado, mas fundamentalmente sozinha. Não havia interação.

Eis que um dia, na mesa do café, Moreira solta o brado: “mulher minha tem que trabalhar!”. Catarina, tomada por um susto súbito, argumentou que trabalhava. Era professora, tinha mestrado e doutorado. “Trabalhar de verdade!”, ele dizia, numa ignorância tribal. Aquilo deprimia Catarina, mas ela ainda não sabia se o deprimente era a colocação do marido ou o caminho que escolheu para a sua vida. 

Com o tempo, a frase também passou a fazer parte da rotina do casal, junto com as mulheres e o quarto trancado. Catarina passou a procurar emprego. Saía de casa bem cedo e ia, durante horas, à procura de uma ocupação. O não salário da universidade tornava-a em desacordo com os sonhos do marido. Talvez por isso ele a trocasse – será que trocava? – por suas vivas obras de arte. Catarina sentia-se incomparável a elas.

Batia em várias portas, seguia classificados dos jornais, procurava na internet, com amigos. “Você é qualificada demais”, dizia um. “Não temos vagas no momento”. “Você é bonita demais”. As respostas eram múltiplas, mas todas no mesmo tom: o do não. Catarina tentava não se acostumar com aquilo e seguir em frente, mas o não era a sua realidade. O do marido, o do emprego, o do dinheiro. Se acostumou. Todo mundo se acostuma.

Mulher minha tem que trabalhar
Nos dias que saía de casa, Catarina percebia os olhos masculinos. Todos se voltavam para ela. Isso causava certo desconforto, porque Catarina, uma esposa padrão, conforme sua mãe, tinha olhos somente para o marido. 

No segundo ano de casamento, Moreira passou a realizar seus trabalhos em um escritório longe do apartamento. Passou a dormir várias noites no escritório. “Para acelerar os trabalhos”, dizia. A solidão de Catarina tornou-se insuportável. Acordava sozinha, dormia sozinha. Passava o restante do tempo sufocada pela cidade, engolida pela fúria da cidade, que a impedia de trabalhar. Era qualificada demais. De corpo e de espírito.

Das muitas vezes que tentava um emprego, mostrava seu currículo, sorria de forma angustiante para o empregador e era despida completamente pelos olhos alheios. A humilhação repetia-se com frequência. O corpo de Catarina era investigado a cada milímetro, devassado por olhares inquietos e pupilas dilatadas de palpitação. Todas as vezes que saia para a cidade, era subjulgada por ela. O mestrado e o doutorado de nada valiam para alguém com um corpo daqueles. Era inútil discutir. Na verdade, preferiam Catarina de boca fechada e o mais quieta possível. Uma escultura curvilínea, uma obra de arte que seu marido não enxergava. Serviria para ser admirada e nada mais.

O trabalho
Uma manhã, na multidão inumana do metrô, juntamente com um exército de sonâmbulos a caminho de suas rotinas, ela foi abordada por uma mulher. Mais velha do que ela, mais feia do que ela, acabada. Olhou de forma esquisita para aquela pessoa e recebeu um cartão. Era um cartão de uma “agente de modelos”. “Você é muito bonita, pense na proposta e me ligue”, disse a mulher. Catarina desconversou, mas gostou particularmente do “bonita”. Não ouvia aquilo há anos. Ouvia as vulgaridades que surgiam do asfalto, ouvia os silêncios de Moreira, mas não era elogiada. Tinha se acostumado a não ser elogiada.

Em casa resolveu ler novamente o cartão. Procurou o marido para contar a façanha. Ao bater na porta do ateliê, ouviu um “estou trabalhando!”, o que a fez lembrar, automaticamente, que ela não trabalhava. E que mulher precisava trabalhar. Ligou para o telefone no cartão, conversou com a mulher do metrô, ouviu com atenção as qualidades necessárias para o trabalho. Achava-se incapaz, mas ouviu da agente que tinha mais do que o necessário. Sentiu-se confiante, uma sensação um tanto estranha, alienígena. Ouvindo isso, prontificou-se a ir para o local combinado, no dia seguinte, à noite. 

À noite
Depois de sair do escritório, como de costume, Moreira parou no bar da esquina com uns amigos. Após vários chopes, entrou no estabelecimento ao lado. Aquele ritual era frequente, repetia-se, normalmente, às terças-feiras. Não era dia de jogo, ficava mais fácil. Ele e os amigos já eram conhecidos, bem tratados e ganhavam as mais distintas regalias.

Sentaram-se nas decrépitas poltronas de couro, uísques sem gelo nos copos, olhos vidrados no palco. Com o apagar de luzes e o início de uma música luxuriosa, subiu ao palco uma figura espetacular, acachapante. Uma mulher impressionantemente linda, corpo hipnotizante, olhar de causar desconforto. A figura subiu no círculo de madeira com pequeninas peças de couro e salto-alto. Aos poucos, foi tirando as peças de roupa, uma de cada vez, o mais devagar e torturantemente possível. Os homens, a esmagadora maioria naquele recinto, viravam animais brutos e torpes, bichos encantados. 

Por estar longe do palco, Moreira não conseguia visualizar com cuidado o rosto daquela figura que, de tão impactante, acreditava ser mística. Após estar quase completamente desnuda, a mulher desceu do palco e caminhou pelo meio das poltronas e sofás do estabelecimento. Recebia urros, elogios dos mais diversos, gritos apaixonadamente pecaminosos. Ao chegar perto do grupo de Moreira, fitou o marido com violência.
Catarina, acordada de um estado de transe, olhava-o com uma força tremenda, demolindo o marido por dentro. Moreira, impaciente, vislumbrava uma nova mulher, uma deusa transformada e renascida. Ao olhar com afinco para a mulher, em completa e irrestrita admiração, Moreira tentava tocá-la com os dedos, suor escorrendo pela testa, uma vontade quase incontrolável de possuí-la. As jovens de sua arte eram incomparáveis àquele turbilhão em movimento. 

Tentou tocá-la, balbuciar algo, mas Catarina tapou-lhe a boca e retornou ao palco, fazendo uma espécie de show particular para cada um dos presentes naquele espetáculo quimérico. Para cada um deles. Após o show, maravilhado, Moreira esperou a esposa na porta do local. Esperou por quase duas horas. A esposa não apareceu, ele resolveu ir para casa.

Perturbado com aquela imagem destruidoramente poderosa, deitou na cama do casal e esperou a chegada da mulher, o que só aconteceu muitas horas depois. Catarina entrou no quarto e, imediatamente, Moreira fez-lhe juras de compromisso. Ela deu de ombros, foi ao chuveiro e deitou-se. Não lhe falou uma mísera sílaba. Adormeceu. O marido não teve a audácia de tocá-la. 

No dia seguinte, Moreira esperou-a na cozinha, com um sorriso incomum, um carinho esquecido. Convidou-a para jantar. 

“Não posso, tenho que trabalhar”, foi a resposta dela.

Catarina havia se tornado uma esposa padrão.