quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A tempestade de sorrisos



O mundo é grande. E difícil de entender.

A rotina massacra e desmistifica. Os mais belos sorrisos viram imagens repetidas, reflexos motores de sensações há muito inexplicáveis. Às vezes nem sabemos por que sorrimos ou se iremos sorrir de novo. O fato é que sorrimos. 

Ela sempre acordava sorrindo. Sempre. Tinha dois filhos lindos, era mãe solteira. Morava na beira da praia. Uma praia igualmente linda, com as areias da cor dos cabelos dos rebentos. Cor de areia. Aquele marrom-amarelado que escorre pelos dedos, assim como os fios ocre que cobriam os olhos curiosos daqueles meninos. Tinha um ritual. Acordava todas as manhãs, sozinha, sem despertador – deixava a janela entreaberta, gostava de ser alardeada pela vida se renovava -, e ia até a janela. Ficava, em pé, os braços abertos como se acolhesse um velho amigo, contemplando a luz que vinha de fora. Não sabia muito bem se a luz que vinha era a sua própria ou a de alguma conjunção físico-mística-climática. Sentia-se quente, reconfortada. Esquecia as necessidades humanas, as vontades de se sentir protegida por alguém. A luz a protegia. Se não fizesse aquele ritual, sentia-se incompleta.

Depois, ainda de pijamas, ia até o quarto dos filhos e os olhava, maternalmente, dormir. Ficava naquela posição mais alguns instantes e tentava ouvir a respiração deles. Por vezes imaginava que eles estivessem em sonhos tão profundos que talvez tivessem morrido. 

Era jornalista. Via as coisas do mundo e as tomava nota. Observava coisas das mais belas e das mais horríveis, com destaque para essas últimas. O mundo não era tão bonito. Seus olhos, já cansados, guardavam uma singela sensibilidade e inconformidade com as coisas mundanas. Não conseguia entender o mundo. Na verdade, tinha desistido de entendê-lo. Seu trabalho ajudou-a a ignorar um pouco mais o brilho dos rostos e das almas que encontrava pela cidade e os sorrisos, diferentes dos seus, eram raros. Todos viraram replicantes. Vazios. 

Naquela manhã, ao se dirigir ao trabalho, a luz que vira ia sendo consumida, gradualmente, por uma névoa acinzentada. Uma cor pálida de sujeira e poeira que se assemelhava à conjunção de fatores que vem antes das tempestades. O rosto da mulher, assim como o céu que pairava móvel em seu para-brisa, estava igualmente estático e inerte. Ela não sentia nada. E nem era para sentir. Funcionava mecanicamente como os humanos.

Ao chegar ao jornal, um infeliz jornal de grande circulação que tinha renegado e se desfeito de sua humanidade – se é que algum dia a teve -, a frágil luz que via acima de sua cabeça não mais estava lá. O céu havia se tornado pesado, opaco. Aquela luz tropical, de todas as manhãs, estava invisível, escondida em algum lugar secreto. Aos poucos, o fio luminoso foi consumido pela força de um buraco negro que só fazia aumentar. Com ele, as trovoadas começaram. E uma tempestade elétrica. 

Ao sair do carro e ver as primeiras manifestações daquela força sobrenatural, a mulher não mostrou reação. Saiu do carro da mesma forma como entrou. Era parte dele. Maquinal, feita de ferro e aço contorcidos. Como fazia todos os dias, foi até a máquina de café, sua verdadeira e única amiga naquele antro de dores e amores mal resolvidos, em que cumprimentava todos com o entusiasmo de um sonâmbulo.

Tomou seu café olhando o céu. Ou o que restava dele. As trovoadas eram acompanhadas por uma sinfonia de estrondos e explosões de luzes pontiagudas que pareciam querer vingar-se de alguém. Ou de todos. A violência daquele quadro chegava a ser bela, tamanha era a sua força. As coisas muito fortes tendem a ser bonitas, pensava, enquanto engolia aquele líquido escuro e amargo. Não usava açúcar, porque a vida já era demasiado dura para ser ludibriada. Precisava ser vivida como ela era. 

Depois de uns bons instantes contemplando aquele espetáculo brutal e misterioso, caminhou-se para a sua mesa. Na redação, todos trabalhavam de forma maquinal como as formigas, andavam atordoados e, gritando, tentavam entender o mundo. Ou explicá-lo. Ela sabia que o mundo não era para ser entendido. Era para ser vivenciado. E que, para explicá-lo, o ideal era inventar máximas que não faziam sentido. Conseguia viver assim. 

Na sua mesa, a foto dos filhos. Sorrindo, como ela sorria sempre que acordava e ia contemplar a luz de todas as manhãs. Nem bem tomou consciência da situação ordeira de sua mesa, o telefone tocou. Um telefone vermelho, frio e com ar de urgência. Talvez por ser vermelho. Atendeu. 

- Houve um assassinato, disse uma voz trêmula.

A mulher, sem mostrar maior sobressalto, fez algumas perguntas e anotou rabiscos inteligíveis em um pedaço de papel amarronzado. Levantou a sobrancelha uma vez, mas não chegou a contorcer os lábios enquanto ouvia a voz. Agarrou a bolsa e comunicou ao chefe que iria ao encontro da cidade. Aquela mesma cidade de onde veio, mas que agora assumia uma dimensão diferente, inóspita, distópica. 

- Vai. Se der, faz matéria da chuva.

Como ele sabia se iria chover? A incerteza do céu estava clara. Por mais que parecesse um prelúdio de uma hecatombe, aquela desordem demonstrava certa ordenação que não era para ser explanada.

Desceu as escadas do prédio do jornal – sempre ia de escadas, achava os elevadores por demais invasivos, sentia-se obrigada a dividir espaços com estranhos que queria sempre estranhos -, apanhou o maço de cigarros e entrou no carro. Dentro, um motorista de peso avantajado e um fotógrafo jovem e barbudo. 

Passou o endereço ao motorista e resumiu o que sabia da história ao fotógrafo. Recostou-se no banco traseiro e ouviu o motorista conversar banalidades esportivas com o fotógrafo. O rádio estava sintonizado em uma estação que tocava uma música animada, mas sem vida nenhuma. Um produto comercial que, no fundo, era muito triste. Todos são. Impedida de pensar por causa daquela música, a mulher voltou-se ao vidro e contemplou o céu, que começara a mover-se numa velocidade sísmica. Deixara de ser um alvo impenetrável e tornava-se, cada vez mais, objeto de manifestação da ira dos deuses.

O mundo era politeísta. Talvez estivesse em fúria pela indiferença dos humanos com mais um assassinato. Ou talvez fosse somente uma arregimentação natural dos fenômenos que compõem o mundo. Ela não sabia dizer. Os outros dois ocupantes do carro do jornal, muito menos. Divertiam-se em suas totalidades superficiais e esqueciam da vida lá fora, enquanto o carro deslizava com dificuldade por quilômetros de estradas mal acabadas. As estradas eram o reflexo do mundo.

Um clarão se formava à frente dos faróis do automóvel. Dezenas de pessoas retorciam-se para ver alguma coisa que estava estirada no chão. A mulher sabia que aquela era a costumeira cena de um assassinato. O epílogo de uma vida que ela não conhecia e que precisava conhecer por força da profissão. O chão era de barro e aqueles que ali estavam misturavam-se com o marrom da terra fofa, afundavam na terra com seus chinelos de dedo gastos. Ela não conseguia entender por que a morte atraía tanto. O motivo daquele capítulo findo ser tão fascinante para tantos. 

Alguns entoaram gritinhos com a chegada da equipe. Cercaram o fotógrafo, pedindo fotos e permissão para ver o equipamento. Ele sorria – o sorriso dele parecia sincero – e deixava que se aproximassem. A mulher estava mais ao longe. 

- Não vai usar a bota? – perguntou o motorista.

- Não.

Tirou os brincos e o relógio. Deixou no banco traseiro. Depois, desceu com seus pequenos sapatos vermelhos e afundou os pés na lama. Em cheio. Enfiou aquelas cores vivas em um lamaçal lodoso e pútrido. Era o mínimo que poderia fazer, já que estava enfrentando, mais uma vez, a morte. Talvez algum respeito fosse necessário. Ao chegar perto, aquele mar de olhos e suspiros abriu espaço e ela pode, enfim, ver as consequências do mundo. Não era um assassinato, a voz havia mentido. Eram dois. Os corpos, vestidos com roupas brancas, estavam numa mistura de marrom e vermelho, igual a seus sapatos. Imóveis, pareciam calmos. Ela tentava assimilar porque aqueles rostos pareciam tão tranquilos. 

Dois homens, policiais, vieram ao seu encontro, repassar as informações e depoimentos que haviam recolhido. Ela fingia se importar, mas o que a atormentava era porque aqueles rostos estavam tão serenos. Um deles, arriscava, tinha um pequeno sorriso. Talvez de sarcasmo, ela não sabia bem. Ignorava completamente as vozes roucas dos homens, enquanto via aquela cena medieval, mas corriqueira. De todos os muitos assassinatos que vira, esses tinham algum significado especial. Restava saber qual.

Para motorista e fotógrafo, a volta para a redação foi tal qual a vinda. Para a mulher, não. Recostada contra o vidro traseiro do carro, ela continuava a observar o céu, absolutamente calada. Parecia doente. Com algum vírus desconhecido, contaminada por alguma dor que a ciência não havia catalogado. Imaginava o sorriso de um dos meninos – um pouco mais velho que seus filhos – assassinados e questionava qual dos sorrisos era o mais genuíno, o dos seus filhos ou o dele. 

No meio do percurso de volta, o céu descompensou. Formou uma língua negra vulcânica e abrasadora que, carregada de um negro mais denso que a mais escura das noites, desabou. A força daquelas águas foi tão intensa e violenta, que o mundo parecia que ia se decompor. Chovia com tanta sinceridade que ela arriscava dizer que o os céus queriam, secretamente, afogar os humanos de uma vez por todas. 

As gotas surgiam como cachoeira flamejante que cuspia lava do topo da terra, um magma frio e líquido que trazia destruição. Inexplicavelmente, os outros dois ocupantes do veículo não prestavam nenhuma atenção naquilo, preferindo continuar em suas pseudototalidades. A mulher, ao contrário, via, estática, aquela dança da morte que tomava conta da cidade. Era difícil imaginar que o esqueleto urbano iria sobreviver a tamanho poder. 

Carros começaram chocar-se e, em cerca de três minutos, foram dois os atropelamentos. Numa das ruas, uma cratera gigantesca formou-se, como se quisesse engolir a vida que estava em volta. Um homem foi engolido inteiro, como que na boca de uma baleia cansada de milênios de caçadas em seus oceanos profundos. Em nenhum momento lembrou da orientação do chefe de que teria que fazer uma matéria da “chuva”. Pouco se importava. Afinal, o céu continuava coberto em um manto negro impermeável e fúnebre e a tempestade elétrica parecia ser a mais importante das coisas naquele momento. 

A sucessão caótica de eventos continuou e parecia interminável. Pensava nos filhos e no menino assassinado com o sorriso no rosto, mas mais nesse. Onde será que ele estava? Estaria ainda naquele lamaçal ou teria sido levado para algum lugar? Sequer estaria em algum lugar? Não sabia.

As ruas no entorno da redação estavam tomadas por uma água amarela, uma mistura de folhas, lodo, sacos plásticos, lixo. Em uma das principais avenidas das imediações, um animal que parecia um jacaré investigava as possibilidades trazidas pelos céus. A mulher via aquele tronco de madeira com assaz curiosidade, mas não chegava a estar perplexa. 

Até que, finalmente, os três desceram do carro, com água na altura da cintura. Agora eram parte indelével da sujeira. Eram componente indissociável das águas que continuavam a cair de cima, mas que também vinham de baixo e de dentro. Logo ao desembarcarem, a mulher viu uma ruela mínima, onde costumava, todos os dias, estacionar seu carro. 

A cena era aterradora. Dois outros automóveis estavam esmagados contra um muro verde escuro, completamente destruídos pela violência dos rios formados ali. Mais adiante, um menino tentava, desesperadamente, sair, pela janela, de uma das casas que havia sido tomada pelas águas. Aparte, naquela mesma ruela, o carro da mulher estava intacto. Estava estacionado no exato mesmo lugar que ela parava todos os dias. As águas talvez o tivesse respeitado.

Mas a chuva continuava. Maior e mais assustadora. 

- É o seu carro? – questionou o motorista, enquanto batia nos braços da mulher, obrigando-a a sair do meio das águas.

- É.

Os olhos do motorista cresceram como balões de ar e fogo. Ele subiu correndo as escadas, dizendo ir procurar ajuda para resgatar o carro da subida das águas. O fotógrafo, vendo a cena do carro, do menino, da mulher emudecida e paralisada, mas que olhava com uma força tremenda para aquilo tudo, e das chuvas que cresciam e atormentavam, bradou com a mulher que eles precisavam sair dali.

 - Eu vou ficar aqui.

Foi a resposta da mulher, que esboçou um pequenino sorriso, tal qual aquela ruela que começava a ser engolida pelas águas e o menino, que ninguém mais sabia onde estava.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Atonal



Escrito em 2010, quando Rubem Fonseca era meu melhor amigo.

Na direção, viu aquele pontinho loiro sentado em um banco, na praça. Pernas de fora, olhos grandes, redondos. Parou o carro lentamente, o pontinho entrou. Tornara-se grande, chamativo, radiante. Tinha 22 anos, os olhos, ainda grandes, verde-limão, um sorriso tímido e desconcertante – um pouco estranho – e os cabelos soltos, batendo no ombro. Lisos. Sentou no banco do carona e lá ficou, muda. Cumprimentaram-se com um beijo no rosto e ele seguiu. Acelerou o carro. Não estava carregado, mas apreensivo. 

Dois seres ali, tão diferentes e tão iguais. Querendo um pouco cada de cada outro. Ela estava visivelmente nervosa, falava rápido, tropeçando as palavras, coçava os olhos com afinco e repetia as frases, frases a esmo, soltas, desconexas. O importante era continuar falando. Ele mal olhava pra ela, não conseguia encará-la. Tampouco sabia como fazê-lo. Focava-se na direção e na cidade que acontecia na frente dele, nas luzes que se moviam e no barulho do caos pouco organizado que acontecia a sua volta. Ele mais ouvia do que falava, preferia entender que voz era aquela dentro do seu universo de metal, que sons eram aqueles ainda indecifráveis. Absolutamente nada do que era falado era importante. O importante era ouvir, discernir o tom de voz suspirante e trôpego que acontecia. Acostumar os ouvidos com uma música que ele nunca tinha ouvido. Como notas de um instrumento estranho que era estapeado pelo músico, cuspindo acordes dissonantes. Ouvia aquilo como se estudasse um novo gênero musical, um aprendizado instantâneo, imediato. Confuso. 

Falaram as maiores banalidades, o carro propositalmente devagar, em marcha baixa. Ouvir era mais importante que falar. Mais do que dirigir. E, principalmente, do que chegar. Ela percebeu a direção lenta. Após cruzarem uma avenida movimentada, chegaram às margens de um lago, onde a cidade parecia preguiçosa, o orvalho brincando nas árvores e gramado. Poucas pessoas nas ruas, um pedaço sonolento da urbe. Fazia frio, mais do que o normal. Dentro do carro o calor imperava. O ar condicionado não tinha sido ligado. Ele esquecera. Suava incessantemente e pouco se importava. Na verdade, não sabia que estava suando. Os sentimentos eram incertos. Ainda não se acostumara com a música feminina que era entoada ao seu lado e não tinha tido contato com aquele cheiro. Achava que queria. Ela não havia feito uma pergunta sequer a ele. Nenhuma. Apenas falava. O importante era continuar falando. 

Depois de mais alguns bons minutos, o carro caminhando deslizante no chão de asfalto, chegaram. Foi parado ali, perto do lago, da água parada e esverdeada daquela poça imensa. Olharam-se pela primeira vez, os olhos encontraram-se. Ela voltou a coçá-los com esmero. Ele fitava-a com curiosidade. Não sabia quem era aquela estranha que falava compulsivamente. Uma longa faixa de jazz desarmônico, agudos imperando sobre os graves. Mas a melodia era, mais do que tudo, suave. Ela tentou tirar o cinto, franziu a sobrancelha, ele sorriu. Olharam para frente. A noite era companhia, reluzia na água, sem fazer alarde. O balé de olhares com frases e voz continuou por mais alguns minutos. Bons minutos. Ele continuava suando, passava a mão na testa para esconder o suor. Fez algumas perguntas, não respondidas completamente. Os sorrisos diminuíram, mas não acabaram. 

Saíram do carro. 

O corpo dela nunca mais foi encontrado.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Memórias de um estagiário de jornalismo

Olhando uns e-mails antigos, encontro alguns momentos da rotina jornalística passada. a tragédia e a comédia (...) às vezes, bate saudades.

"me: eu fiz matéria de uma mulher que achou barata no lanche. também fiz matéria de protesto que não existiu"

"me: me arruma o telefone do hospital xx, pelo amor de deus. é pra pegar o estado de saúde de um cara baleado amigo de uma cantora de brega"

"me: escrevi 40 linhas. virou um colunão de 15. depois caiu e não entrou nenhuma linha"

"me: o cara que eu entrevistei anteontem foi assassinado ontem"

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

calma.

calma.

calma?
c/alma
com a alma.
ama.
é preciso.
calma.
com a alma. 
amar.