O mundo é grande. E difícil de
entender.
A rotina massacra e desmistifica.
Os mais belos sorrisos viram imagens repetidas, reflexos motores de sensações há
muito inexplicáveis. Às vezes nem sabemos por que sorrimos ou se iremos sorrir
de novo. O fato é que sorrimos.
Ela sempre acordava sorrindo.
Sempre. Tinha dois filhos lindos, era mãe solteira. Morava na beira da praia. Uma
praia igualmente linda, com as areias da cor dos cabelos dos rebentos. Cor de
areia. Aquele marrom-amarelado que escorre pelos dedos, assim como os fios ocre
que cobriam os olhos curiosos daqueles meninos. Tinha um ritual. Acordava todas
as manhãs, sozinha, sem despertador – deixava a janela entreaberta, gostava de
ser alardeada pela vida se renovava -, e ia até a janela. Ficava, em pé, os
braços abertos como se acolhesse um velho amigo, contemplando a luz que vinha
de fora. Não sabia muito bem se a luz que vinha era a sua própria ou a de
alguma conjunção físico-mística-climática. Sentia-se quente, reconfortada.
Esquecia as necessidades humanas, as vontades de se sentir protegida por
alguém. A luz a protegia. Se não fizesse aquele ritual, sentia-se incompleta.
Depois, ainda de pijamas, ia até
o quarto dos filhos e os olhava, maternalmente, dormir. Ficava naquela posição
mais alguns instantes e tentava ouvir a respiração deles. Por vezes imaginava que
eles estivessem em sonhos tão profundos que talvez tivessem morrido.
Era jornalista. Via as coisas do
mundo e as tomava nota. Observava coisas das mais belas e das mais horríveis,
com destaque para essas últimas. O mundo não era tão bonito. Seus olhos, já
cansados, guardavam uma singela sensibilidade e inconformidade com as coisas
mundanas. Não conseguia entender o mundo. Na verdade, tinha desistido de entendê-lo.
Seu trabalho ajudou-a a ignorar um pouco mais o brilho dos rostos e das almas
que encontrava pela cidade e os sorrisos, diferentes dos seus, eram raros. Todos
viraram replicantes. Vazios.
Naquela manhã, ao se dirigir ao
trabalho, a luz que vira ia sendo consumida, gradualmente, por uma névoa acinzentada.
Uma cor pálida de sujeira e poeira que se assemelhava à conjunção de fatores
que vem antes das tempestades. O rosto da mulher, assim como o céu que pairava móvel
em seu para-brisa, estava igualmente estático e inerte. Ela não sentia nada. E nem
era para sentir. Funcionava mecanicamente como os humanos.
Ao chegar ao jornal, um infeliz
jornal de grande circulação que tinha renegado e se desfeito de sua humanidade –
se é que algum dia a teve -, a frágil luz que via acima de sua cabeça não mais
estava lá. O céu havia se tornado pesado, opaco. Aquela luz tropical, de todas
as manhãs, estava invisível, escondida em algum lugar secreto. Aos poucos, o
fio luminoso foi consumido pela força de um buraco negro que só fazia aumentar.
Com ele, as trovoadas começaram. E uma tempestade elétrica.
Ao sair do carro e ver as
primeiras manifestações daquela força sobrenatural, a mulher não mostrou
reação. Saiu do carro da mesma forma como entrou. Era parte dele. Maquinal,
feita de ferro e aço contorcidos. Como fazia todos os dias, foi até a máquina
de café, sua verdadeira e única amiga naquele antro de dores e amores mal
resolvidos, em que cumprimentava todos com o entusiasmo de um sonâmbulo.
Tomou seu café olhando o céu. Ou o
que restava dele. As trovoadas eram acompanhadas por uma sinfonia de estrondos
e explosões de luzes pontiagudas que pareciam querer vingar-se de alguém. Ou de
todos. A violência daquele quadro chegava a ser bela, tamanha era a sua força.
As coisas muito fortes tendem a ser bonitas, pensava, enquanto engolia aquele
líquido escuro e amargo. Não usava açúcar, porque a vida já era demasiado dura
para ser ludibriada. Precisava ser vivida como ela era.
Depois de uns bons instantes
contemplando aquele espetáculo brutal e misterioso, caminhou-se para a sua
mesa. Na redação, todos trabalhavam de forma maquinal como as formigas, andavam
atordoados e, gritando, tentavam entender o mundo. Ou explicá-lo. Ela sabia que
o mundo não era para ser entendido. Era para ser vivenciado. E que, para explicá-lo, o ideal era
inventar máximas que não faziam sentido. Conseguia viver assim.
Na sua mesa, a foto dos filhos.
Sorrindo, como ela sorria sempre que acordava e ia contemplar a luz de todas as
manhãs. Nem bem tomou consciência da situação ordeira de sua mesa, o telefone
tocou. Um telefone vermelho, frio e com ar de urgência. Talvez por ser
vermelho. Atendeu.
- Houve um assassinato, disse uma
voz trêmula.
A mulher, sem mostrar maior
sobressalto, fez algumas perguntas e anotou rabiscos inteligíveis em um pedaço
de papel amarronzado. Levantou a sobrancelha uma vez, mas não chegou a
contorcer os lábios enquanto ouvia a voz. Agarrou a bolsa e comunicou ao chefe
que iria ao encontro da cidade. Aquela mesma cidade de onde veio, mas que agora
assumia uma dimensão diferente, inóspita, distópica.
- Vai. Se der, faz matéria da
chuva.
Como ele sabia se iria chover? A
incerteza do céu estava clara. Por mais que parecesse um prelúdio de uma
hecatombe, aquela desordem demonstrava certa ordenação que não era para ser explanada.
Desceu as escadas do prédio do
jornal – sempre ia de escadas, achava os elevadores por demais invasivos,
sentia-se obrigada a dividir espaços com estranhos que queria sempre estranhos
-, apanhou o maço de cigarros e entrou no carro. Dentro, um motorista de peso
avantajado e um fotógrafo jovem e barbudo.
Passou o endereço ao motorista e
resumiu o que sabia da história ao fotógrafo. Recostou-se no banco traseiro e
ouviu o motorista conversar banalidades esportivas com o fotógrafo. O rádio
estava sintonizado em uma estação que tocava uma música animada, mas sem vida
nenhuma. Um produto comercial que, no fundo, era muito triste. Todos são. Impedida
de pensar por causa daquela música, a mulher voltou-se ao vidro e contemplou o
céu, que começara a mover-se numa velocidade sísmica. Deixara de ser um alvo
impenetrável e tornava-se, cada vez mais, objeto de manifestação da ira dos
deuses.
O mundo era politeísta. Talvez estivesse em fúria pela indiferença dos humanos com mais um assassinato. Ou talvez fosse somente uma arregimentação natural dos fenômenos que compõem o mundo. Ela não sabia dizer. Os outros dois ocupantes do carro do jornal, muito menos. Divertiam-se em suas totalidades superficiais e esqueciam da vida lá fora, enquanto o carro deslizava com dificuldade por quilômetros de estradas mal acabadas. As estradas eram o reflexo do mundo.
O mundo era politeísta. Talvez estivesse em fúria pela indiferença dos humanos com mais um assassinato. Ou talvez fosse somente uma arregimentação natural dos fenômenos que compõem o mundo. Ela não sabia dizer. Os outros dois ocupantes do carro do jornal, muito menos. Divertiam-se em suas totalidades superficiais e esqueciam da vida lá fora, enquanto o carro deslizava com dificuldade por quilômetros de estradas mal acabadas. As estradas eram o reflexo do mundo.
Um clarão se formava à frente dos
faróis do automóvel. Dezenas de pessoas retorciam-se para ver alguma coisa que
estava estirada no chão. A mulher sabia que aquela era a costumeira cena de um
assassinato. O epílogo de uma vida que ela não conhecia e que precisava
conhecer por força da profissão. O chão era de barro e aqueles que ali estavam
misturavam-se com o marrom da terra fofa, afundavam na terra com seus chinelos
de dedo gastos. Ela não conseguia entender por que a morte atraía tanto. O
motivo daquele capítulo findo ser tão fascinante para tantos.
Alguns entoaram gritinhos com a
chegada da equipe. Cercaram o fotógrafo, pedindo fotos e permissão para ver o
equipamento. Ele sorria – o sorriso dele parecia sincero – e deixava que se
aproximassem. A mulher estava mais ao longe.
- Não vai usar a bota? –
perguntou o motorista.
- Não.
Tirou os brincos e o relógio. Deixou
no banco traseiro. Depois, desceu com seus pequenos sapatos vermelhos e afundou
os pés na lama. Em cheio. Enfiou aquelas cores vivas em um lamaçal lodoso e
pútrido. Era o mínimo que poderia fazer, já que estava enfrentando, mais uma
vez, a morte. Talvez algum respeito fosse necessário. Ao chegar perto, aquele
mar de olhos e suspiros abriu espaço e ela pode, enfim, ver as consequências do
mundo. Não era um assassinato, a voz havia mentido. Eram dois. Os corpos,
vestidos com roupas brancas, estavam numa mistura de marrom e vermelho, igual a
seus sapatos. Imóveis, pareciam calmos. Ela tentava assimilar porque aqueles rostos
pareciam tão tranquilos.
Dois homens, policiais, vieram ao
seu encontro, repassar as informações e depoimentos que haviam recolhido. Ela
fingia se importar, mas o que a atormentava era porque aqueles rostos estavam
tão serenos. Um deles, arriscava, tinha um pequeno sorriso. Talvez de sarcasmo,
ela não sabia bem. Ignorava completamente as vozes roucas dos homens, enquanto
via aquela cena medieval, mas corriqueira. De todos os muitos assassinatos que vira,
esses tinham algum significado especial. Restava saber qual.
Para motorista e fotógrafo, a volta
para a redação foi tal qual a vinda. Para a mulher, não. Recostada contra o
vidro traseiro do carro, ela continuava a observar o céu, absolutamente calada.
Parecia doente. Com algum vírus desconhecido, contaminada por alguma dor que a
ciência não havia catalogado. Imaginava o sorriso de um dos meninos – um pouco
mais velho que seus filhos – assassinados e questionava qual dos sorrisos era o
mais genuíno, o dos seus filhos ou o dele.
No meio do percurso de volta, o
céu descompensou. Formou uma língua negra vulcânica e abrasadora que, carregada
de um negro mais denso que a mais escura das noites, desabou. A força daquelas
águas foi tão intensa e violenta, que o mundo parecia que ia se decompor. Chovia
com tanta sinceridade que ela arriscava dizer que o os céus queriam, secretamente,
afogar os humanos de uma vez por todas.
As gotas surgiam como cachoeira
flamejante que cuspia lava do topo da terra, um magma frio e líquido que
trazia destruição. Inexplicavelmente, os outros dois ocupantes do veículo não prestavam
nenhuma atenção naquilo, preferindo continuar em suas pseudototalidades. A mulher,
ao contrário, via, estática, aquela dança da morte que tomava conta da cidade. Era
difícil imaginar que o esqueleto urbano iria sobreviver a tamanho poder.
Carros começaram chocar-se e, em
cerca de três minutos, foram dois os atropelamentos. Numa das ruas, uma cratera
gigantesca formou-se, como se quisesse engolir a vida que estava em volta. Um
homem foi engolido inteiro, como que na boca de uma baleia cansada de milênios
de caçadas em seus oceanos profundos. Em nenhum momento lembrou da orientação
do chefe de que teria que fazer uma matéria da “chuva”. Pouco se importava.
Afinal, o céu continuava coberto em um manto negro impermeável e fúnebre e a
tempestade elétrica parecia ser a mais importante das coisas naquele momento.
A sucessão caótica de eventos
continuou e parecia interminável. Pensava nos filhos e no menino assassinado
com o sorriso no rosto, mas mais nesse. Onde será que ele estava? Estaria ainda naquele lamaçal
ou teria sido levado para algum lugar? Sequer estaria em algum lugar? Não
sabia.
As ruas no entorno da redação estavam
tomadas por uma água amarela, uma mistura de folhas, lodo, sacos plásticos,
lixo. Em uma das principais avenidas das imediações, um animal que parecia um
jacaré investigava as possibilidades trazidas pelos céus. A mulher via aquele tronco
de madeira com assaz curiosidade, mas não chegava a estar perplexa.
Até que, finalmente, os três desceram
do carro, com água na altura da cintura. Agora eram parte indelével da sujeira.
Eram componente indissociável das águas que continuavam a cair de cima, mas que
também vinham de baixo e de dentro. Logo ao desembarcarem, a mulher viu uma
ruela mínima, onde costumava, todos os dias, estacionar seu carro.
A cena era aterradora. Dois outros
automóveis estavam esmagados contra um muro verde escuro, completamente
destruídos pela violência dos rios formados ali. Mais adiante, um menino
tentava, desesperadamente, sair, pela janela, de uma das casas que havia sido
tomada pelas águas. Aparte, naquela mesma ruela, o carro da mulher estava
intacto. Estava estacionado no exato mesmo lugar que ela parava
todos os dias. As águas talvez o tivesse respeitado.
Mas a chuva continuava. Maior e
mais assustadora.
- É o seu carro? – questionou o motorista,
enquanto batia nos braços da mulher, obrigando-a a sair do meio das águas.
- É.
Os olhos do motorista cresceram
como balões de ar e fogo. Ele subiu correndo as escadas, dizendo ir procurar
ajuda para resgatar o carro da subida das águas. O fotógrafo, vendo a cena do
carro, do menino, da mulher emudecida e paralisada, mas que olhava com uma
força tremenda para aquilo tudo, e das chuvas que cresciam e atormentavam,
bradou com a mulher que eles precisavam sair dali.
- Eu vou ficar aqui.
Foi a resposta da mulher, que esboçou um pequenino sorriso, tal qual aquela ruela que começava a ser engolida pelas águas e o menino, que ninguém mais sabia onde estava.
Foi a resposta da mulher, que esboçou um pequenino sorriso, tal qual aquela ruela que começava a ser engolida pelas águas e o menino, que ninguém mais sabia onde estava.