quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Crônica de um amor perpétuo



Nunca esqueci o dia em que, menino, vi, pela primeira vez, de perto, um caboclo de lança. Foi no Centro do Recife, próximo ao mercado de São José. Vestida com a “gola”, a indumentária feita de lantejoulas coloridas cuidadosamente instaladas como uma armadura, aquela entidade amarela, azul e vermelha segurava uma enorme lança de madeira com firmeza digna de fé. Na boca, a flor característica e os lábios cerrados em uma seriedade assustadora. Vi a cena com curiosidade e certo receio. Meu pai tentou me explicar o que se passava. Lembro que não conseguiu. Ninguém conseguiria. Era fevereiro, nas semanas anteriores à festa mais bonita e sincera de todas. 

Com o passar dos anos, de uma infeliz rejeição e incompreensão, minha relação com o carnaval tornou-se necessária. A primeira vez que subi as ladeiras de Olinda, em um sábado de Galo da Madrugada, e vi a força das infinitas cores do sítio histórico, as percepções mudaram definitivamente. As incontáveis orquestras de frevo, os caboclinhos, cirandas e troças acompanhando o cortejo de fantasias e mascarados, os incontáveis sorrisos e abraços de encontro e reencontro, a identificação de realmente pertencer àquele lugar organizado em uma desordem absoluta. Os braços para o alto, como antenas apontando para o céu, acompanhados de pés que levitam, na catarse de “Vassourinhas” e dos confetes e serpentinas do Elefante.

Os históricos casarões portugueses sendo tomados pela turba mais alucinada, a cordialidade de Holanda personificada naqueles rostos queimados do sol do trópico. Não mais hostil, mas acolhedor, um abraço quente e denso na interminável festa que, se dura da sexta-feira à acachapante quarta-feira de cinzas, permanece no peito durante o decurso do ano. Baco, sacana, inegável dizer, foi muito feliz. Nos enfeitiçou, de forma perpétua: nas alfaias, trombones, estandartes, clarins e personas. Essas, se durante as quatro estações vestimos dissimuladamente, todos os dias, preferimos, quando estamos na mais etérea e singular massa humana, escancará-las, despir-nos das máscaras do cotidiano para vestirmos outras, menos embrutecidas e dissimuladas. 

O carnaval, como a fé daquele caboclo, é sincero. Ali, a nossa felicidade é a maior de todas. A tristeza também. A tristeza somente como saudade, exílio, porque não há espaço para a dor em meio à celebração. Os deuses, sábios entendedores da alma humana, não permitiriam. Amar o carnaval é amar a própria história; não se trata de uma simples “festa”, mas, ao contrário, da identificação com a origem. É um relacionamento imaterial, intenso, perpétuo, com a mais bela e fiel das mulheres. Porque quem gosta de carnaval gosta para sempre. É a festa pagã que mais representa o sonho católico: “sejam felizes para sempre”. E serão. 

De pequeno, no mercado de São José, à altura de barbas escorrendo pelo rosto, como agora, nunca houve brigas, separações, desentendimentos. Os distanciamentos, é verdade, doem. A saudade é parte dessa equação eterna, que começou ali, na vista daquela figura mística, parte do maracatu rural, envolta em um mistério ainda sem solução. A colorida imagem daquele caboclo de lança, tenho a impressão, acompanha minhas andanças nos dias de Momo até hoje. É o inexplicável espírito do carnaval.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O Som ao Redor (de uma cidade incompleta)



Normalmente, a experiência cinematográfica ganha força superior quando o espectador consegue criar uma conexão identitária, nostálgica ou ideológica com a obra. Uma interação extrassensorial que extrapola o senso comum ou mesmo o que se passa durante o tempo de exibição da película. 

Nas minhas quatro horas e vinte e dois minutos de O Som ao Redor, o significado do filme de Kleber Mendonça Filho engrandeceu-se tanto ou mais que os conflitos que suas personagens enfrentam. Na segunda, mais do que na primeira vez, os silêncios e os significados ocultos do filme passaram a reverberar com mais força. 

Sou pernambucano. Nasci no Recife, numa segunda-feira de junho de 1986. Nesse fatídico dia, a União Soviética vencia o Canadá e a França goleava a Hungria. Era ano de Copa do Mundo. Dias mais tarde, eu na incubadora, com fios de ficção científica na cabeça, o Brasil de José Sarney perderia para a mesma França numa indigesta e inesquecível disputa de pênaltis. 

Mais de 26 anos passaram-se e muitas mudanças vieram. Em mim e no Recife. Ao mesmo tempo, vendo a cidade no último mês, pouca coisa mudou. Do bairro da Encruzilhada, onde nasci, para a eterna casa dos meus avós, no Hipódromo, e para minhas últimas moradas na Nassau, em Boa Viagem, onde se passa o filme, o intervalo de tempo trouxe mudanças indeléveis, mas que guardam o mesmo substrato. A clínica de acupuntura, o curso de inglês e a quadra da praia, que eu frequentei por mais de quatro anos, continuam lá. Mas a mudança de que trata o filme vai muito além.

A máxima de Giuseppe di Lampedusa, autor de “O Leopardo”, mais tarde transformado em filme por Visconti, de que “as coisas precisam mudar para que permaneçam iguais”, é a alegoria dos tempos hodiernos. “O Som ao Redor” fala disso. 

Fala de um tempo que vem se esvaindo, por um matiz civilizatório e urbano, com vernizes de verticalização, concreto armado e pisos de cerâmica. Ocorre que, nesse processo, as cicatrizes do passado – minhas, suas, das personagens do filme – permanecem lá, prontas para serem remexidas. 

O Recife é uma dessas personagens. Da “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, com sua tão combalida tese de convivência harmoniosa entre as três raças conformadoras da identidade brasileira, até a investigação sociológica de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, Pernambuco conserva tradições, medos, incompletudes. Uma história inconclusa de uma cidade que se reconstrói. A cidade dos demiurgos que vem, aos poucos, tendo sua identidade transmudada. 

Aos poucos sendo comida por gigantes de ferro e de aço, os arrogantes “edifícios de 40 andares, com olhos de vidro e cores berrantes”, narrados por Siba, a Recife que visitei recentemente é sinal do “progresso” por qual passa o país. A evolução dos tempos não nega: nasci em um apartamento de três andares; vivi até os quatro anos em uma casa de vila no bairro do Hipódromo, com grades brancas e muro de musgo, iguais aos da Setúbal passada de “O Som ao Redor”; e, na minha última vivência na cidade, morei em dois prédios. Dois arrogantes de olhos de vidro e corpo de aço, ladrões do sol das areias da praia de Boa Viagem. 

Sair da cidade que amamos tem dessas coisas. O distanciamento das origens, assim como acontece com o amor, ajuda-nos a compreender melhor os fatos e as mudanças. Em 1990, mudei-me para o Rio de Janeiro. Em 2004, voltei ao Recife. Ao longo desse tempo, visitava, ao menos uma vez por ano, a cidade. As transformações eram brutais. Muito do que lembro daquele quintal do Hipódromo é facilmente reconhecível por vários contemporâneos meus da cidade dos rios, canais e mau-cheiro, e presente, ainda que cada vez menos, hoje: os corações-de-nego; o futebol no meio da rua, como os meninos da Setúbal de Kleber Mendonça Filho; o entregador de sorvetes que passava com um sino; os “bom dia” na rua; o vendedor de caldo de cana; os carroceiros; os banquinhos de cimento em que ficavam os senhores e as senhoras da rua Martins Ribeiro; os cachorros que atormentavam meus avós dia e noite. 

Esses acontecimentos marcaram minha infância e meu presente. Em 2007, meus avós se mudaram do Hipódromo, por razões que não convêm explicitar aqui. Hoje, como acontece com grande parte da Recife que conheci, moram em edifício. Depois que saíram, nunca tiveram coragem de voltar àquela casa de muro musgo e grades brancas. A última notícia que tive é que está à venda. Como o bairro é tombado, a casa não pode ser demolida para dar lugar a um edifício. Linda, continua lá, vazia. Ao lado dela, suas vizinhas enfeitam-se com mais e mais arames farpados, cercas eletrônicas e cachorros à prova de som. 

As pessoas vêm verticalizando o Recife. As relações ficam verticalizadas. O fenômeno ajuda a manter a incompletude dessa modernidade impiedosa. Acho que o filme de Kleber fala, um tanto, da saudade de um tempo que, ainda que permaneça, vem sendo consumido. O medo, sentimento que percorre impiedosamente toda a narrativa, não é só físico, mas também é medo de perder as memórias. Trata-se de um questionamento real e pertinente do cotidiano dos recifenses, que, é notório, não é coincidência. Numa das cenas mais bonitas de “Era uma Vez Eu, Verônica”, de Marcelo Gomes, a personagem de Hermila Guedes leva o pai doente, interpretado por J.W. Solha, para rever a antiga casa onde morara. Um pedaço do passado que, assim como as muitas casas do Arruda, Torreão e Setúbal, só para citarmos alguns bairros, vêm desaparecendo.

Curioso notar como esse mesmo J.W. Solha mantém uma relação diametralmente oposta com a terra e a propriedade como o Francisco de “O Som ao Redor”. De personagem fragilizado no filme de Gomes, é, na obra de Kleber, o retrato do coronelismo latente que ainda paira, como penumbra, nas relações sociais pernambucanas. Uma aristocracia decadente, falida moralmente, mas que preserva relações hierárquicas, marcadas pelo mandonismo e pelo preconceito. 

Dono de engenho na Zona da Mata pernambucana, ele também monopoliza as terras que hoje dão espaço aos espigões da porção sul do Recife. Quem tem a terra tem o poder. Moral, pecuniário e social. Como os arcaicos senhores de terras da Pernambuco do século XVI, em que os “homens bons” eram os que mantinham rendas “enraizadas” em terra e domínio político, Francisco mantém séquitos de empregados, devidamente diferenciados pela cor da pele, e uma silenciosa ascensão simbólica sobre os demais. 

Naquele espaço público, como em muito do que ocorre no atual debate imobiliário pernambucano, o privado sobressai-se. Nisso, a reflexão de “O Som ao Redor” é importante: privatizam-se os espaços físicos, mas, mais do que isso, as relações humanas. 

De cerca de um ano para cá, sinto que vem surgindo um novo momento de reflexão acerca da cidade. Do Recife como um organismo vivo que vem morrendo como era e dando espaço a um outro, metamorfoseado e desconhecido. Assusta. O debate público sobre essa questão, refletido aqui no cinema, suscita problemas que a vida política não conseguiu dar seguimento. 

De fato, desde 2004, quando voltei ao Recife, até 2008, quando me mudei, fui imerso por um cotidiano caótico e pela “normalização” de um processo de destruição do passado. Paradoxalmente, essa destruição do passado ocorre com a preservação de inúmeras características que vemos no “homem cordial” de Buarque de Holanda ou nos “donos do poder” de Raimundo Faoro. Muito disso, mascarado no “orgulho” – que também sinto – de ser pernambucano. 

Com essas transformações, e a perda das referências que nos tornam o que somos, surge um medo sufocador e nauseante que compartilha a rotina com os recifenses. Fiz muitas coberturas policiais por um certo período e vi coisas inimagináveis. Os seguranças e moradores da Setúbal de “O Som ao Redor” veem pouco nas duas horas e onze minutos de filme. Mas o fato é que não precisam vê-lo, assim, escancarado. O medo, característica indelével do habitante do Recife atual, perpassa as relações sociais, o receio pela cor da pele, pela origem social, pelo passado de sobrenome, pelas posses. 

Kleber Mendonça Filho lida com esses incômodos monstros de forma silenciosa. Pelo silêncio, trata da paranoia da classe média em um país-continente que, assim como a cidade de seu filme, vem mudando radicalmente desde a última década. Como que em uma crônica de costumes, mostra sequências que, aparentemente um tanto banais, guardam significado mais amplo. Talvez por causa disso venha provocando tamanho debate e despertado tanto interesse. Mostra um Recife perdido entre o passado e o presente, sem saber que futuro terá. Por tantas razões, é um filme que deve ser visto e divulgado. Como grande obra que é, pensa tempos aterrorizantes – e interessantes.