quarta-feira, 6 de julho de 2011

A verdadeira história de Garrinchinha

Aclébio era morador de um prédio grã-fino na rua Visconde de Pirajá, no bairro de Ipanema, zona sul do Rio. Era um rapaz com seus já 26 anos, estudava engenharia e trabalhava com o pai, Marcílio. O prédio era majestoso, propício a uma família de empreiteiros em um país que se construía e reconstruía. Dos vários porteiros que tomavam conta do edifício, Valmir era o porteiro-chefe. Tinha vindo de Campina Grande, na Paraíba, e participado da construção do prédio, 40 anos antes, como mestre-de-obras, o que lhe rendeu o cargo de porteiro-chefe. Era respeitado como um porteiro-chefe deveria ser. Valmir morava no playground com mulher e três filhos e levava a rotina de morador do metro quadrado mais caro da cidade. Conhecia a rotina de todos os moradores e sabia decorado a placa de todos os carros estacionados na garagem. Gostava de se gabar falando que morava no Macadâmia. A Macadâmia é uma fruta de origem australiana, em formato de noz, mas que pode ser utilizada para fabricação de doces finos. A história que se contava era que o prédio ganhou esse nome porque tinha herdado a cor da fruta.

O segundo na hierarquia da portaria era o Garrinchinha. Garrinchinha também veio da Paraíba, mas, ao contrário de Valmir, de João Pessoa, em um ônibus de carreira. Há 35 anos foi trazido pelo pai, que tentava a sorte no Rio de Janeiro. Ninguém sabia seu nome ao certo, nem mesmo o Valmir, mas o fato é que havia herdado o apelido porque jogava futebol nos campos de várzea mais ou menos como o ídolo do Botafogo. Suas pernas não eram tortas, mas Garrinchinha também jogava na ponta-direita e costumava entortar os adversários nas noites de pelada, o que gerava certas discussões sobre a falta de respeito para com os adversários. As moças que assistiam às partidas soltavam gracejos para o baixinho e suspiravam com seu atrevimento no campo. Garrinchinha estava acostumado com o assédio. Quando ouvia Maria Betânia em seus plantões no Macadâmia, era implacavelmente alvo das moças que ali trabalhavam. Ele era mais novo que Valmir e não tinha filhos. Nem mulher.

Isso nunca foi uma questão para os moradores do Macadâmia. Todos gostavam de Garrinchinha, sempre solícito ao entregar a correspondência e em buscar bicicletas em um quartinho no canto da garagem, um trabalho às vezes ingrato, pelo amontoado de ferro comido pela maresia e pneus murchos que se precisava enfrentar para resgatar alguma bicicleta. Sempre sorrindo, Garrinchinha brincava e elogiava os moradores que iam pedalar nas ruas de Ipanema. Gostava de ouvir rádio enquanto cuidava da portaria e costumava cumprimentar todos os moradores com um bom dia. Era grande amigo das empregadas e faxineiras, trabalhadoras braçais que faziam aqueles apartamentos se movimentarem. Sempre gargalhava com elas e dizia gracinhas para as mais atiradas. Alguns suspeitavam que Garrinchinha fosse um grande comedor. Outros, que era doce. Como Macadâmia.

A revelação

Como de praxe, em dias de sol forte e céu azul, a piscina virava uma festa. Situada na cobertura dos 18 andares do Macadâmia, era uma bênção para aqueles estressados habitantes do Rio de Janeiro. Podiam ver a praia, o calçadão, a vida acontecendo. Nessas ocasiões, o morador do 1302, seu Valdo, bebia cerveja com Marcílio, pai de Aclébio. Seu Valdo era um homem acima de qualquer suspeita, desembargador ilibado, funcionário da Justiça, e um beberrão fora de série. Quando começava a contar seus causos, formava-se uma roda de curiosos interessados nas histórias que presenciava no trabalho e nos bordéis que freqüentava. Em uma manhã, vestindo sunga branca e segurando um suado copo de cerveja , sentenciou:

- Olha aqui, o Garrinchinha é viado!

Os moradores ouviram aquilo sem acreditar, pensando que a cerveja já tivesse tomado conta dele, como era costumeiro. Alguns questionaram o desembargador. “Mas o Garrinchinha é um atleta!”, bradou Marcílio. “Que absurdo. Ele certamente dá uns pegas na Judite, a menina que trabalha lá em casa...”, disse outro morador.

Dona Marisa, moradora do 1602, pensava estar lidando com um verdadeiro homofóbico. Quis saber de onde surgira aquele impropério. Aqueles lábios grossos e cansados de charuto e fumaça não hesitaram na réplica, incisiva.

- Um dia eu estava caminhando na praia e ele passou por mim correndo. Vocês precisam ver esse cidadão correndo! É uma bailarina! Qual o homem de verdade que corre daquele jeito? É um boiola de marca maior! Batata!

Dona Marisa torceu os lábios. Para ela, Garrinchinha era um doce. Outros simplesmente saíram de perto de seu Valdo, como que tomados por uma ira repentina contra um homem que até então era a voz da razão em Macadâmia. Marcílio olhou para Aclébio e os dois não deram uma palavra sobre o incidente. Continuaram ali tomando uma suave cerveja até o sol acabar. Voltaram para casa e esqueceu-se do delírio de seu Valdo. Nunca mais o assunto veio à tona nas reuniões dominicais na piscina do prédio. Preferiam falar de coisas menos polêmicas ou da vida de algum morador que não fosse declarado como homossexual.

Aclébio, no entanto, ficou com aquilo na cabeça. Morava em Macadâmia há 26 anos e nunca notara nada revelador em Garrinchinha. Ao mesmo tempo, via seu Valdo como um exemplo. Uma figura cristalina, da mais alta reputação e perspicácia. Não podia estar errado. Nunca errava, nem mesmo nos casos mais complicados. Em um dos tantos cafés-da-manhã que tomava antes de ir ao trabalho, comentou a história com a “menina que trabalhava na sua casa”. Chamava-se Piedade, mas, ironicamente, não tinha piedade de ninguém. Tanto sabia disso que preferia ser chamada de Dai. A origem do apelido é desconhecida, mas nem mesmo a filha de quatro anos a chamava de Piedade. Era uma pessoa de consciência.

Ouviu com cuidado o relato de Aclébio enquanto lhe servia ovos mexidos e calou-se. Muito religiosa, Dai era evangélica e mesmo que não tivesse piedade de ninguém, evitava questionar o estágio natural com o que Deus criou o homem e a mulher. Chamar Garrinchinha de “viado”, como seu Valdo havia feito, era pecar contra o nome sagrado. Consentiu com a narração de Aclébio e continuou seus afazeres.

No dia seguinte, como acontecia nos sábados em que ia trabalhar, levava a filha de quatro anos para o apartamento do Macadâmia. Muito silenciosa, fazia o serviço sem incomodar os moradores. Era adorada. Ao descer do elevador para ir embora, encontrou Valmir, o porteiro-chefe. Os olhos daquele senhor brilhavam com a menininha de quatro anos que, sorridente, sempre o abraçava. Ao ver a comovente cena, Dai teve uma ideia que maculava seu nome de nascença. Iria descobrir a verdadeira história de Garrinchinha. Era inconcebível um Paraíba não ser cabra macho. Vendo Valmir brincar com a sua filha, resolveu começar pelas beiradas.

- Criança é uma benção de Deus, não é?

- Não tem coisa melhor, ainda mais quando a gente está ficando velho - respondeu o porteiro.

- Você tem quantos filhos, Valmir? Dois?

- Tenho três, dois meninos e uma menininha agora com cinco anos.

Instintivamente, aquela mulher sabia o que estava fazendo. Perguntou por outro porteiro, o Severino, porteiro noturno que era chamado pelos colegas de Xororó, cantor da dupla Chitãozinho e Xororó, pelos longos cabelos que cultivava.

- E o Severino, tem quantos filhos?

- Tem um rapagão – disse Valmir. - Está trabalhando com condução durante a semana – complementou, enquanto continuava brincando, como que encantado pelos olhinhos daquela criança, que tanto lembrava a sua própria.

- Eu achei que ele tivesse um filho mesmo. E o Garrinchinha, hein? – questionou Dai, a malícia em pessoa.

Uma coleção de bonecas

Valmir ouviu a pergunta, largou a criança e virou os olhos para Dai. Apertou seus ombros, um com cada mão, e abriu um sorriso de escárnio. “Aquele ali tem uma coleção de bonecas!”, sentenciou. Não se contendo, chamou outro funcionário do prédio e fez ele repetir a frase. “Uma coleção de bonecas!”, repetiu. Piedade havia solucionado a questão. Mal esperava a segunda-feira para poder contar a história para Aclébio. Isso iria circular pelo prédio e logo a falsa imagem do Garrinchinha jogador e paquerador seria desfeita.

Dito e feito. Dois dias depois, na mesma cena do café da manhã, contou o que ouviu para Aclébio. Esse se divertia, sem acreditar na tirada de Valmir, pretensamente tão sério e sisudo. Contou para seu pai, Marcílio, que não podia esperar para contar na reunião em volta da piscina no fim de semana. Rezava para que fizesse sol. Era garantia que todos estariam ali, com seus copos de cerveja suados, isopores, carteado, e o mais importante, seu Valdo, vestido com sunga branca e charuto no canto da boca, a destreza em pessoa.

Formou-se a roda ao lado da piscina e, vendo a praia de Ipanema sob um belíssimo sol de fevereiro, Marcílio finalmente teria uma história para contar. Em dado momento interrompeu seu Valdo. “Tenho uma ótima!”, disse, não se cabendo em si. Marcílio nunca tinha uma ótima, o que era motivo de vergonha. Tinha para si que pai que não sabe contar histórias não é motivo de orgulho para seus filhos. Seu Valdo parou de contar a anedota sobre uma secretária do escritório e dispôs-se a escutar o pai de Aclébio.

- O Garrinchinha é mesmo um viado! O Valmir contou que ele tem uma coleção de bonecas! De bonecas, podem acreditar nisso?! – relatou, divertindo-se com o espanto dos demais e para deleite de seu Valdo.

- Eu disse que ele era viado! Um homem que corre daquele jeito não é homem! Sempre soube que homem que corre como se faltasse uma mola no corpo é porque é viado! – gritava seu Valdo, copo de cerveja na mão, sunga branca esgarçada e o charuto entre os dedos, uma autoridade impressionante. – Eu disse, não disse?! Engulam essa!

Logo, todo o prédio saberia que Garrinchinha era homossexual, menos ele mesmo. A história circulou por dias entre todos os moradores. Alguns passaram a não encarar Garrinchinha. Outros a rir de seus sorrisos com desdém. Dona Marisa, do 1602, chamou Valmir em um canto e pediu que seu carro, um BMW prata absolutamente impecável, fosse lavado semanalmente pelo Severino. Antes, era função do Garrinchinha, que a fazia com enorme zelo. Aos poucos, foi percebendo que os moradores mais queridos passaram a não mais se dirigir a ele e mesmo a não aceitar correspondências que viessem de suas mãos. Para ele, o Macadâmia perdeu a doçura.

Garrinchinha parou de sorrir. Ficou amargo.