quarta-feira, 22 de maio de 2013

Incêndio

As chamas vermelhas lambiam o telhado de madeira do casarão. Grandes blocos de madeira ruíam e despencavam no meio do decrépito edifício. Barulho de morte. Os pedaços caíam, podres, e traziam consigo um incômodo ensurdecedor. À coloração vermelha do fogo misturavam-se o amarelo e o laranja, um começando no meio do outro, quando o outro nem começava a acabar-se. Como o prédio. As gigantescas estacas de madeira mal iniciavam a queda do tombamento, quando outras, mais rápidas, passavam no meio de seu caminho. Embolavam-se. Um bolero caótico de som e fúria. De inquietação. Depois de alguns minutos nesse torpor sonâmbulo, um vitral eclesiástico partiu-se. Completamente. Ficava na parte mais alta do casarão, na fachada. Como numa igreja. O calor das labaredas tomou conta do ar e o vidro não teve como resistir. Rachou por dentro. Depois se partiu em centenas de pedaços. Barulho de grito de agonia o vidro se partindo. O vitral colorido de verde, vermelho e azul ficou cinza. O vermelho do vidro foi tomado pelo vermelho do fogo. Foi trucidado. A dor das cores foi tão grande que elas implodiram em explosão. Foram cuspidas para fora da fachada. Ao tocarem no chão manifestaram a sua inconsolável tristeza. Gritaram sob a força de vidro. Aquele barulho de corte, de sangue. Vermelho. Como as labaredas. A fumaça escorria pelas paredes que ainda estavam de pé. Perturbava-as. Subia e descia lentamente, como que minando com certo sadismo o equilíbrio bambo. Maltratando. Nada ali era isento. As pernas torpes daquela casa sentiam uma dor incomensurável. Uma dor incompreensível, que nunca sentiremos. Ou talvez sim. O suplício para permanecer de pé era tão grande que as paredes suavam negro. A fumaça metia-se pelos poros abertos daquela estrutura e, com as chamas, forçava até o último suspiro. Dava para ver a sofreguidão. Mas aquele equilibrismo não era eterno. Mais partes incompletas daquele todo ruíam e desmoronavam, secas, no duro chão duro. A dor da queda era comparável à dor da tortura que sentiam. No fundo, seria mais fácil que aceitassem. A dor cessaria e a tortura seria apenas momentânea. Ficaria incrustada na alma, mas deixaria a carne em paz. Mas não foi assim. As partes daquele edifício, em certa resistência inútil e desesperada, tentavam resistir. Ao calor, à fumaça, ao vermelho insaciável. Ninguém sabia o motivo. Mas parecia ser questão de honra. O irônico é que, mesmo assim, aquela fundação sabia que, cedo ou tarde, tombaria. Quis tombar honrosamente, ao menos. Tombou.

Na esquina da frente, um menino franzino e esquelético, só de bermudas e descalço, observava o espetáculo com felicidade indescritível. O calor, tocando-lhe a pele, trazia certo conforto. A fumaça, invasora de corpos, era suportável. O vermelho iluminava seus olhos, refletia em sua retina. Boquiaberto, via aquele monstro desistir de lutar e cair, fulminante, no asfalto derretido.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

A mulher que não amava



Joana não amava. Dizia que, no meio do peito, tinha um buraco. Que a caixa torácica era opaca, vazia. “Um erro genético”. Nascera sem coração e pronto. Conviva-se com isso. 

Tinha um olhar oblíquo, enviesado. À primeira vista, poderiam achar que era estrábica, mas não era. O modo como olhava que era inclinado, singular, estranho. Olhar para Joana era um exercício de bravura, tamanha era a intimidação que conseguia impor com aqueles olhos perfurantes e azuis. O rosto da moça era perfeito, mas transmitia a mesma sensação de inquietude dos grandes felinos. Qualquer erro de aproximação poderia levar ao pior dos fins.

Tomar contato com aquela entidade era um desafio ainda sem solução. Muitos tentavam, todos sem sucesso. O mais cruel era que Joana sabia do próprio poder. Como os impérios mais permanentes, tinha plena consciência do fascínio e do respeito que despertava. Usava isso a seu favor, não sem muito exame de consciência. Era uma mulher complexa.

O corpo... bem, melhor não falar do corpo. Tal qual o monstro ctônico grego com a capacidade de petrificar, ela destruía pelo olhar. Poucos resistiam. 

O convite àqueles braços era tão insuportável quanto interessante. Isso não quer dizer que, naquele vai-e-vem de pós-modernidade líquida, a moça conseguisse encontrar sua paz. O coração – a falta dele – continuava ali, batendo em meio ao peito, pulsando sangue pelas artérias que transbordavam por aqueles olhos esguios e fantasiosos. A ausência, contudo, era palavra de ordem.

Paradoxalmente, preencher o físico era esvaziar a alma. Despedaçado o que havia sobrado dele, o espírito de Joana era quase invisível, insípido. 

Com o passar do tempo, ela foi percebendo o padrão. Passou a entender que estava fadada a não saciar sua vontade de paz, pelos desesperos terrenos. Resignava-se que a verdade entoada deveria ser eterna: não tinha coração e pronto.

Poucos sabiam que, da imagem dominadora, tal qual a maioria dos Césares, Joana escondia um lado dos mais frágeis. Era capaz de verter lágrimas como a mais sensível das mulheres e sorria, às vezes, com o pensamento dos mais amenos. Surpreendia-se com a possibilidade de fazer coisas mundanas sem que aquilo sobrepujasse sua condição quase sobre-humana. 

Se, no convívio, provocava as reações mais primitivas daquelas hordas, como o desejo de dominá-la somente por ser quem era, na introspecção era outra. Assumia a condição de fragmentada e sofria quieta. Em silêncio. Afinal, revelá-lo seria macular seus traços mais marcantes. Sem saber, trocava profundidade por insegurança. 

Joana não amava porque já amou. Os grandes amantes são aqueles que, alguma vez, em algum dos tempos, amaram a si e aos outros. Aquela mulher havia amado com tanta sinceridade, enchido o peito com tantas expectativas e futurismos que havia perdido seu ar de divindade. Tornara-se a mais humana das humanas.
Isso, percebeu, a fragilizava. Ao entregar e escancarar seus versos e olhares mais sinceros, ficava tal qual os exércitos mais confiantes: abria-se a retaguarda e o espaço para a apunhalada no calcanhar. No início, ignorava-o – melhor, fazia sem se importar. Depois, passou a anular-se. Quanto mais amava mais o fazia para fora e não para dentro. 

O processo foi minando-a em sua própria capacidade de amar. Partida, enxergava o mundo exterior e apagava a própria luz. Até que, como nos maiores romances, desvaneceu. Recebeu a mais cruel das notícias: estava só. 

Com medo de viver consigo, com aquele espectro de ser humano passível de erros e de sentimentos, encastelou-se na imagem dos olhos oblíquos. Vestia o manto da superioridade quando, dentro, existia aquele buraco negro que antes era de um vermelho fogo.

Joana não amava porque tinha medo.