Acordou e, como fazia todas as manhãs, esticou o braço
esquerdo à procura. A pele tocou o travesseiro fofo e ali ficou. Não houve
contato humano. Estranhou. Normalmente ela o acordava com um beijo antes de
sair da cama. Abriu os olhos o mais rápido que o normal e bagunçou ainda mais
os cabelos, numa tentativa um tanto desajeitada de acordar sem a presença dela.
Não sabia como fazer. Permanecia em um estado de incômodo torpor com o qual não
sabia lidar. A lentidão o fez se movimentar. Saltou da cama vagorosamente e
olhou as cortinas. Estavam fechadas. Normalmente ela abria as cortinas antes de
sair da cama. A escuridão tomava conta do quarto e o escondia em penumbra,
impedindo que olhasse com precisão as coisas em volta. Talvez a mulher ainda
estivesse ali.
- Ana...
Silêncio.
À falta de resposta, continuou o movimento de renascimento
diário e colocou uma bermuda. Calçou os chinelos gastos azuis e passou a mão na
cara carcomida pela barba, indagando a incompletude do cenário. Um ato falho,
não terminado. Não entendia, apesar do esforço. O mais estranho: o outro lado
da cama estava completamente organizado, límpido, como se ninguém tivesse usado
aquele espaço. O espaço da cumplicidade. Ficou, ainda no escuro, tento contato
com aquela superfície da cama, passando a ponta dos dedos, no branco do lençol,
numa tentativa vã de transformá-lo em cabelos, em cílios, em pele. Uma
sequência dolorosa de frustrações.
Dali, sem abrir a cortina, sem desligar o gélido ar
condicionado, seguiu para o banheiro. Abriu a porta numa pequena esperança.
Achava que Ana poderia estar lhe fazendo uma surpresa, escondida em algum
cômodo. Não que ela já tenha feito isso antes. Abriu a porta, pé-ante-pé.
Ninguém. Água no entorno da pia e a tampa do vaso sanitário levantada.
Normalmente a tampa do vaso ficava fechada, ela não gostava daquilo. Era de uma
organização ímpar. Ele, o oposto.
Olhou-se no espelho. Barba, cabelos, dentes. Uma multidão de
imperfeições e desencontros biológicos à sua frente. Ficou se olhando por
alguns segundos. Encheu as mãos de água fria e jogou nos olhos. Só nos olhos,
pois acreditava que só os olhos eram necessários para se acordar. Ignorou o
resto do rosto. Em seguida, olhou, um tanto atordoado, para um pequeno copo
onde ficavam as escovas de dente. Ali, só uma escova: azul. A outra, laranja, desaparecida.
Abriu a gaveta embaixo da pia. Toalhas. Abriu o blindex. Um xampú e um
sabonete. Normalmente eram vários. E condicionador. Escovou os dentes com uma
lentidão incomum, tentando racionalizar a falta. Era a instituicionalização da
ausência tomando forma.
Foi até a cozinha. Normalmente, sentia o cheiro do café
ainda no corredor. Ela, diurna e ativa, costumava acordar mais cedo e preparar
o café. Ele, criatura da noite, demorava a se acostumar com hábitos tão primitivos;
ela, contudo, o havia feito perceber vida antes das 18h. Naquele dia não havia
café, torradas, frutas, nada. A cozinha estava impecável, mármore, fórmica
branca, pia de metal. Na geladeira, nenhum recado. A foto que costumava ficar
ali, dos dois, sorridentes, em viagem, só costumava. E não parecia que foi
arrancada. Situava-se sob um ímã de morango, gordo e redondo. O ímã continuava
ali, instigante, vermelho. A foto, não.
Abriu o armário. A geladeira. A gaveta dos talheres. Abriu
tudo com certa calma irritante. Procurava algo que o reconfortasse. Achou café,
pão e garfos. Fez o café e uma torrada. Dirigiu-se à sala, com uma dor que
começava a questionar a até então dominante calma. Era uma sensação falsa,
sonsa. Ele lembrava da analista, que dizia que fazer aquilo era costume de quem
sentia uma raiva incomensurável das coisas. Talvez. Olhou em volta na sala, o
jornal do dia anterior estendido sobre o sofá, aberto em alguma seção
igualmente desinteressante e insípida. Olhou a data: quarta-feira. Normalmente
comprava o jornal junto com Ana, depois de tomarem o café preto de todos os
dias.
Ao fim do café, pendurado no parapeito da janela, uma dor
esfuziante começava a tomar conta de seu peito. O vazio daquele cômodo era suportável.
O do incômodo, não. Fazia um calor sufocante e, mesmo assim, havia pouca luz.
Tentava rememorar o que poderia haver ocorrido. Na sua cabeça, pouco se
passava. A sensação de luto era a maior de todas, parecia-lhe impossível lidar.
Um eterno enterro. Fechou os olhos com força. Ficou assim alguns segundos. Um
minuto, talvez. Abriu. A sala continuava idêntica. Ligou para Ana. Sem
resposta. Tornou a ligar. Ausência.
Mais agitado, retornou ao quarto. Abriu o armário, viu muitos
vestidos. Alguns ainda tinham o seu cheiro. Muitos coloridos. Outros não.
Abraçou os que não tinham o cheiro. Lembravam menos ainda a mulher. Apertou-os
com tanta força contra si que chorou. Tentou, de novo, rememorar o possível
motivo do desaparecimento. Não conseguia conceber.
Voltou para a sala. Sentou-se em uma cadeira elevada –
daquelas de bar – e ficou olhando pela janela, sentindo o abafado, como se
esperasse poder ser levado da mesma forma que ela. Ficou assim vários momentos,
um tanto imóvel, um luto de perda da outra metade da cama.
Em meio ao transe, um barulho de fechadura. Pensou ser parte
do delírio e continou de olhos fechados, como que ainda sonâmbulo. Doutro lado
da porta, Ana, com o jornal e flores.
- Oi, meu amor.