sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Síria: imperativo humanitário?

Às vésperas de um provável ataque da titubeante coalizão liderada pelos Estados Unidos, a Síria se arrasta, há mais de dois anos, em conflito cuja solução poucos se arriscam a apontar. Sob a iminência de uma intervenção ocidental que almeja suplantar o governo de Bashar al-Assad e encaminhar ao poder grupos considerados mais afeitos aos interesses do Ocidente, a catástrofe síria guarda relação com motivações socioeconômicas, comerciais, geopolíticas e religiosas, para além do premente cenário de caos humanitário.

Dos protestos populares do início de 2011, no bojo das revoltas da chamada “primavera árabe”, que varreram os governos autocráticos de Tunísia, Líbia e Egito, e se compôs em movimentos de massa contra Assad, à organização do opositor Conselho Nacional Sírio, em meados do mesmo ano, a repressão governamental deu origem à violenta e inconclusa guerra civil. No transcurso de dois anos, os embates já deixaram mais de 100 mil mortos, além de fluxo de 2 milhões de refugiados e de 5 milhões de deslocados internos. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a cada 15 segundos um sírio é obrigado a abandonar seu país.

Esse quadro, que vinha se deteriorando após a divulgação das lamentáveis cenas que mostram centenas de vítimas do uso de armas químicas – cuja autoria aguarda relatório a ser produzido por equipe de peritos da ONU, malgrado as acusações de Estados Unidos e de França –, deve se agravar com a expectativa de bombardeios aéreos. Os fluxos de migrantes forçados, além de representarem agudo desafio para os países de destino, notadamente Líbano, Jordânia, Turquia, Iraque e Egito, podem tensionar ainda mais as relações entre os vizinhos.

A religião é componente indissociável do tabuleiro do Oriente Médio. A separação entre xiitas e sunitas, uma das divisões do Islamismo, é refletida no jogo de forças médio-oriental. O espectro xiita é composto, grosso modo, pelo governo de Assad, pelo Irã e pelo Hezbollah, três vértices considerados indesejados pelos formuladores de política externa norte-americana. Em contrapartida, Arábia Saudita, outras monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo, e Jordânia, por exemplo, são liderados por sunitas, que veem uma possível queda de Assad como meio de enfraquecer a influência iraniana na região.

Além disso, há que se considerar a dinâmica energética, intrinsecamente relacionada aos desdobramentos na Síria. O país, que se encaminha para a condição de importador de petróleo, mantém posição estratégica na chamada geopolítica dos gasodutos: situa-se entre os maiores produtores de petróleo e de gás do Golfo Pérsico e do mar Cáspio e as áreas consumidoras do continente europeu, dependentes do abastecimento da Rússia. O Arab Gas Pipeline (AGP), que conecta o Egito ao porto libanês de Tripoli, e o IPC Line, esse último fora de operação desde a guerra do Iraque, passam pela pertinência geográfica síria.

Tal condição levou Assad a anunciar, em 2009, a malfadada “estratégia dos quatro mares”, que visava a transformar a Síria um hub regional para o transporte de petróleo e de gás entre o Golfo Pérsico e os mares Cáspio, Negro e Mediterrâneo. Nesse mesmo ano, uma proposta do Qatar previa a conexão de suas reservas com a Turquia, passando pela Síria, o que contrabalancearia a preeminência russa no abastecimento da Europa Ocidental. Assad, para proteger o aliado, inviabilizou a iniciativa. Uma ampliação do AGP até a Turquia tampouco saiu do papel.

Posteriormente, foi assinado um memorando de entendimento com o Iraque para o transporte de gás e de petróleo para o porto sírio de Banias, no Mediterrâneo. O Irã, por sua vez, propôs a construção de um gasoduto Irã-Iraque-Síria, o que representou uma afronta aos planos dos absolutistas catarianos. Na prática, entendeu-se que a presença de Assad no poder representava um entrave significativo para o escoamento de insumos energéticos do Oriente Médio. Não à toa, em sua maioria e ainda que dividida quanto a apoiar um ataque armado, a Liga Árabe prega uma mudança na condução do regime sírio.

Soma-se às considerações econômicas a paralisia do Conselho de Segurança da ONU, que poderia vir a legitimar uma intervenção, caso Moscou e Pequim não sinalizassem vetar qualquer pleito nesse sentido. Possíveis respaldos, como foi o caso da resolução 1973/2011, que possibilitou a interferência da OTAN no conflito líbio, parecem completamente improváveis. A Rússia, que possui uma base naval no porto sírio de Tartous, é fornecedora de armas para a Síria e tem interesse na continuidade da atuação de suas empresas do ramo energético no país.

Ademais, uma possível queda do mandatário sírio tenderia, na visão russa, a beneficiar minorias islamistas radicais – presentes na miríade de grupos que compõem a oposição – o que poderia se refletir em sua instável fronteira. Já a expectativa norte-americana tem por foco primordial o enfraquecimento de Teerã. O combate a Assad, dessa forma, é uma maneira de minar a influência iraniana na configuração geopolítica do Oriente Médio e de fortalecer relativamente a de Israel.

O argumento humanitário, em sua totalidade defensável, porém estranhamente silenciado no curso das 100 mil mortes e dois anos de guerra civil, retomou força nos estertores dos ataques químicos do último dia 21. Reveste-se como principal justificativa da incursão moralizadora de Barack Obama junto ao Legislativo norte-americano, replicada nos embates parlamentares britânicos. Com a negativa do Reino Unido e da Alemanha, essa em meio à campanha eleitoral, os Estados Unidos encontram resguardo apenas no governo da França, que vem buscando manter sua relevância numa ordem internacional transitória e incerta.

Até o momento, aventam-se possibilidades as mais diversas para uma incursão no território sírio, em que se consideram ou não os apoios do Conselho de Segurança, da Liga Árabe e da OTAN. Pouco foi discutido sobre as consequências do mesmo e sobre o pós-conflito. Uma certeza existe: não se trata apenas do imperativo humanitário.

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