terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Abraços partidos



1.

Densa névoa branca de uma manhã de segunda-feira. Encontrava-se sonolento, incapacitado de realizar movimentos que não os do automático. Costumava ir ao trabalho por uma serra íngreme, com uma faixa de rolamento de cada lado, o que inviabilizava ultrapassagens. Isso o fazia levar mais de 80 minutos para chegar ao destino. Chegar atrasado era um processo que o reconfortava, pois poderia colocar a culpa na serra, no trânsito, nos caminhões que travavam a via, nos ônibus que seguiam perigosamente em mão dupla. Acima de tudo, considerava a demora algo terapêutico, em que ouvia os discos que queria, sozinho, em ruídos só dele, sem que fosse necessário dividi-los com quem quer que seja. Contemplava a paisagem. Era uma meditação solitária.

Ao aproximar-se da metade de seu caminho, em uma ladeira com seus 70 graus de inclinação, o tráfego travou. Seu pequeno carro avermelhado ficou como que um brinquedo naquela enorme porção de rocha. A insignificância dos humanos, mais patente em meio àquela fila nada indiana de metal e motores. Quieto em seu veículo, olhou para um dos lados e viu um automóvel azul metálico estacionado fora da pista, em cima do gramado que dava para um precipício de algumas centenas de metros de altura. O carro estava cuidadosamente organizado sobre a porção verde, encoberto na névoa branca e por árvores mal cuidadas e cortadas. Era impossível ver a placa ou se havia algum ocupante no veículo. A aura esgarçada de mistério dada pelas nuvens ralas fazia-o sentir-se em um filme noir. Apesar disso, a estranha comunhão de cores fazia algum sentido.

Ao lado do carro, um corpo reconfigurava-se na bruma. Calças jeans apertadas contrastavam com uma camiseta larga de listas. Era possível ver alguma abundância de cabelos, o que o levou a crer ser uma mulher. A figura estava paralisada, voltando-se para o fim, fitando o infinito. Um dos pés titubeante quanto a soltar-se no ar ou a permanecer fincado em terra resoluta. Um dilema que não sabia ter-se criado em sua cabeça ou ser realidade fática. A calmaria de seu trajeto tornou-se profundamente abalada por aquele espectro borrado, holograma perdido que se apagava. Ele soltou uma das mãos da direção por alguns instantes e abriu um dos vidros manuais. Ensaiou alguma palavra, quando o fluxo de veículos retomou seu curso e a vida pareceu continuar lenta e mecanicamente. Ao apertar os olhos míopes a fim de ver se a imagem fantasmagórica permaneceria ou se caminharia para dentro do espaço enevoado, foi capturado por buzinas e sirenes que o obrigaram a se mover.

Engatou a primeira marcha e foi levado pelo turbilhão da cidade. No primeiro movimento, ouviu um barulho de baque seco e, esgueirando de soslaio o gramado ao lado, notou apenas o carro azul-metálico, que acreditava já ter visto antes. A blusa de listras. Os cabelos. Aquela estúpida coloração familiar. Fazia sentido. Perturbou-se.

2.

Sol entre nuvens em uma manhã de sexta-feira. Encontrava-se sonolento, incapacitado de realizar movimentos que não os do automático. Costumava ir ao trabalho por uma serra íngreme, com uma faixa de rolamento de cada lado, o que inviabilizava ultrapassagens. Isso o fazia levar mais de 80 minutos para chegar ao destino. Chegar atrasado era um processo que o reconfortava, pois poderia colocar a culpa na serra, no trânsito, nos caminhões que travavam a via, nos ônibus que seguiam perigosamente em mão dupla. Acima de tudo, considerava a demora algo terapêutico, em que ouvia os discos que queria, sozinho, em ruídos só dele, sem que fosse necessário dividi-los com quem quer que seja. Era uma meditação solitária.

Ao aproximar-se da metade de seu caminho, em uma ladeira com seus 70 graus de inclinação, o tráfego travou. Seu pequeno carro avermelhado ficou como que um brinquedo naquela enorme porção de rocha. Aquela fila nada indiana de metal e motores. Quieto no interior de seu veículo, olhou para um dos lados e viu um automóvel azul metálico estacionado fora da pista, em cima do gramado que dava para um precipício de algumas centenas de metros de altura. O carro estava cuidadosamente organizado sobre a porção verde, encoberto propositalmente por árvores mal cuidadas e cortadas. Era impossível ver a placa ou se havia algum ocupante no veículo.

Ao lado do carro, uma mulher com um vestido branco encontrava-se sentada no gramado. Parecia contemplar a vista. Seu corpo estava perfeitamente perpendicular ao chão e à linha do horizonte de prédios, de casas e de asfalto. A cena lhe parecia mais estranha quando conjugada às batidas tribais e densas que saíam do aparelho de som do veículo que dirigia. Algo não parecia normal. Tinha a impressão de já ter visto aquele carro azul antes. Tentara ver a placa, mas, ainda que o tempo lhe ajudasse, não tinha visão suficiente por causa da vegetação baixa. A mulher lhe parecia familiar, mas algo não encaixava. Era difícil percebê-la enquanto sentada. Quando teve que seguir, percebeu que aquele corpo continuaria imóvel, sentado, olhando.

3.

Sol em uma manhã de quinta-feira. Encontrava-se sonolento, incapacitado de realizar movimentos que não os do automático. Costumava ir ao trabalho por uma serra íngreme, com uma faixa de rolamento de cada lado, o que inviabilizava ultrapassagens. Isso o fazia levar mais de 80 minutos para chegar ao destino. Chegar atrasado era um processo que o reconfortava, pois poderia colocar a culpa na serra, no trânsito, nos caminhões que travavam a via, nos ônibus que seguiam perigosamente em mão dupla. Acima de tudo, considerava a demora algo terapêutico, em que ouvia os discos que queria, sozinho, em ruídos só dele, sem que fosse necessário dividi-los com quem quer que seja. Era uma meditação solitária.

Ao aproximar-se de determinado ponto da serra, viu um automóvel azul-metálico estacionado ao longe, em um gramado em forma de platô, e uma bela mulher apoiada em seu capô. Ela olhava ao distante, como se soubesse o que viria depois. Seus traços harmônicos casavam com o dia ensolarado e quente. Uma espécie de quadro impressionista bem acabado que ele gostaria de ter passado mais tempo junto. A mulher lhe parecia muito familiar. Lembrou-se da esposa, com quem estava casado há seis anos. Não a via há dias.

4.

Dias antes, tomava a rotineira xícara de café preto fumegante e sem açúcar. O amargor lhe fazia bem, precisava daqueles tons inacabados de doçura para sentir-se vivo, parte de algo que não funcionava. Acordava muito mais cedo que os demais ocupantes da casa, sorvia o café e saía sem falar com os demais.

Nesse dia, a esposa veio à cozinha, ainda de camisola, a cara amassada por um sono impiedoso. Viera dar-lhe um beijo na testa de despedida. Depois do estalo tímido, voltou de onde viera, como que inexistente. O incomum ato soou-lhe estranho. Assentiu com a cabeça enquanto ela desaparecia cabisbaixa no corredor escuro. Preferiu não perguntar se havia algo de errado.
Entrou em seu carro e seguiu para o trabalho.

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